A secretária de Direitos Humanos do governo Michel Temer, Flávia Piovesan, diz que o massacre de 56 pessoas no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, no dia 1º de janeiro, é a prova de que o sistema carcerário do país está falido.
(Nexo Jornal, 05/01/2017 – Acesse o site de origem)
Para ela, a solução não é seguir construindo cada vez mais presídios, mas rever o que chama de “cultura de encarceramento em massa”. A expressão é recorrente entre os especialistas em direito que consideram haver no Brasil um recurso excessivo às penas de prisão como solução para um número cada vez maior de crimes.
‘Nosso sistema carcerário está inchado, está superlotado. Caminhamos para nos tornarmos a terceira maior população carcerária do mundo’
Por esse ponto de vista, o número de vagas nos presídios nunca será suficiente, pois a sociedade – por meio sobretudo do Legislativo e do Judiciário, apoiados pela opinião pública – estará sempre empenhada em criminalizar novas condutas, prevendo para elas penas de prisão cada vez mais rigorosas.
Piovesan é uma voz dissonante, embora discreta, no governo Michel Temer. Desde que foi nomeada para o cargo, em junho de 2016, é vista como alinhada a uma ala de organizações de direitos humanos que, em diferentes graus, rechaça o processo de impeachment que derrubou a antecessora de Temer, Dilma Rousseff.
A entrevista concedida ao Nexo foi feita minutos após o presidente da República ter anunciado a construção de novos presídios como saída para a crise do sistema prisional – medida defendida também pelo titular do Ministério da Justiça, Alexandre de Moraes, que é chefe direto de Piovesan.
A secretária não se diz contra a medida, mas a identifica como algo paliativo, de curto prazo, e que tem o potencial de contribuir para a cultura de “encarceramento em massa” que ela considera que deve ser combatida.
Além da diferença de ênfase na construção de novos presídios, ela também destoa de Temer ao falar da responsabilização de agentes do Estado pelo massacre em Manaus.
Temer diz que “não houve, por assim dizer, uma responsabilidade, digamos, muito objetiva, muito clara, muito definida — não é? — dos agentes estatais” no massacre, explorando o fato de os serviços internos do presídio, como os agentes carcerários, serem terceirizados.
Já Piovesan afirma que “é claro que há uma responsabilidade direta do ator privado, mas há responsabilidade por omissão, por ineficácia do órgão local”, em referência ao governo do Amazonas.
PARENTES BUSCAM INFORMAÇÃO SOBRE SOBREVIENTES DE MASSACRE EM MANAUS
Quem são os responsáveis por esse massacre?
FLÁVIA PIOVESAN A resposta não pode ser simplista. Há uma conjunção de fatores e de problemas estruturantes que demandam respostas de diversos atores. Eu citaria todo o aparato de Justiça e de Segurança Pública, o Executivo e o Legislativo, com uma responsabilidade compartilhada.
E qual a solução para o problema?
FLÁVIA PIOVESAN O que temos de enfrentar com mais seriedade é o repúdio à cultura do encarceramento em massa. Temos de ter uma visão mais serena.
‘Judiciário já declarou que o sistema [carcerário brasileiro] é inconstitucional, que há um ‘estado de coisa inconstitucional’
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal se valeu pela primeira vez de um instituto que a Corte Constitucional da Colômbia [órgão máximo da Justiça colombiana] criou, que é o chamado ‘estado de coisas inconstitucional’, e reconheceu, pela primeira vez na história, que a situação carcerária no Brasil era um ‘estado de coisas inconstitucional’, pela violação massiva de direitos humanos, pela afronta à dignidade humana.
Esse [massacre em Manaus] é um caso dramático, emblemático, e que é capaz de se transformar numa força catalisadora para que medidas sejam adotadas, para que políticas públicas sejam fortalecidas e refinadas, para que se identifique com mais inteligência quais são os mecanismos capazes de dar uma resposta mais eficaz.
No Brasil, um preso é morto por dia no nosso sistema penitenciário. Então, há um consenso de que o sistema que nós temos é absolutamente falido, está em colapso. Esse consenso vem pelo Judiciário, que já declarou que o sistema é inconstitucional, que há um ‘estado de coisas inconstitucional’. O próprio ministro da Justiça anterior, José Eduardo Cardozo, já tinha dito que [os presídios brasileiros] eram masmorras medievais. Nosso ministro da Justiça hoje [Alexandre de Moraes] se refere a uma caixa de pólvora. A ministra [e presidente do Supremo] Cármen [Lúcia] diz que a situação é grave e que vai explodir. Então, há um consenso. Agora é hora de buscar respostas.
Que respostas?
FLÁVIA PIOVESAN O primeiro caminho é o repúdio à cultura do encarceramento em massa, [além de] aplicar penas alternativas, fomentar a justiça restaurativa [definida pelo Conselho Nacional de Justiça como “solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores”], ter a ciência de que nosso sistema carcerário está inchado, está superlotado, de que nós caminhamos para nos tornarmos a terceira maior população carcerária do mundo.
Há um paradigma equivocado que envolve todo o aparato de Justiça. É momento de repensar a pena privativa de liberdade, que deve ser para os casos que envolvam realmente violência ou grave ameaça. É preciso haver um repertório imaginativo maior para a aplicação de penas alternativas. A mudança da cultura do encarceramento é um chamamento importante.
Mas a ênfase do primeiro pronunciamento do presidente Michel Temer sobre esse episódio vai na contramão do que a sra. está dizendo. A principal resposta dele é a construção de novos presídios.
FLÁVIA PIOVESAN Essa é uma resposta mais imediatista, de curto prazo. A mudança de cultura é uma proposta mais estruturante e de médio prazo. Nós não vamos mudar [de paradigma] para a próxima segunda-feira. Mas eu creio que sejam medidas que se somam. É preciso aliviar a superlotação. É inviável ter um presídio como o de Manaus, cuja capacidade era para 454 detentos, mas havia 1.229, o que é três vezes mais. Então, [construir novos presídios] é uma medida paliativa e de curto prazo. É preciso lidar com o drama da superlotação e buscar desmantelar o crime organizado tentando identificar por meio de serviços de inteligência quem são seus líderes.
O problema estruturante ao qual eu me refiro, do repúdio da cultura do encarceramento, envolve uma mudança que tem de começar pelo Judiciário, pelo promotor, pelo Ministério Público, pela Defensoria. O grau de reincidência no sistema penal é de 80%, ou seja, quem entra nas malhas do Estado repressivo não sai mais, pois falta justamente a ressocialização.
A superlotação também inibe a ressocialização. Como ressocializar pessoas que têm de revezar o colchão, quando tem colchão?
A sra. participa de um núcleo dessa área no governo que, a julgar pelo discurso até agora, é impermeável ao que a sra. está dizendo. Como resposta ao massacre, não houve qualquer outra manifestação do governo nesse sentido que a sra. aponta.
FLÁVIA PIOVESAN Eu participei na terça-feira (3) de uma reunião muito frutífera, no Ministério da Justiça, sobre o Plano Nacional de Segurança Integrada. Eu gosto do adjetivo [“integrada”], porque é isso mesmo, a questão segurança é multifacetada. A reunião abordou questões de direitos humanos, questão racial, de crianças e adolescentes, de mulheres, com várias secretarias especiais, cada qual contribuindo com a sua dimensão.
‘A construção de novos presídios é a frente de curto prazo, mas não se resume a isso e não pode se resumir a isso. É uma medida emergencial que, por certo, não é suficiente’
No fundo, a questão é transversal, é multidimensional, demanda medidas de médio, de curto e de longo prazo, dos mais diversos poderes, nas mais diversas arenas.
Nós temos muito a contribuir na dimensão preventiva. A dimensão preventiva é muito importante, é importante ter o cuidado com as vulnerabilidades da população LGBT, ou entender melhor como é a violência homofóbica, a violência contra as mulheres. Então, no campo da segurança há múltiplas frentes.
A construção de novos presídios é a frente de curto prazo, mas não se resume a isso e não pode se resumir a isso. É uma medida emergencial que, por certo, não é suficiente.
O presidente Michel Temer diz que o Compaj era privatizado e afirma textualmente que não houve uma responsabilidade clara dos agentes estatais no massacre. Como isso dialoga com a ideia de responsabilização?
FLÁVIA PIOVESAN Eu vejo com preocupação. O jornal ‘O Estado de S. Paulo’ traz na edição de quinta-feira [a informação de] que o preso, no Amazonas, custa três vezes mais do que o de São Paulo. A gestão privada é alvo do Ministério Público, do governo. Eu li que o valor pago à Humanizzare [empresa terceirizada no Compaj] é maior que em todos os outros Estados. Há um descontrole, ineficiência de gestão. Os próprios secretários de lá [do Amazonas] criticam não só o valor mas a forma. Então, é claro que há uma responsabilidade direta do ator privado, mas há responsabilidade por omissão, por ineficácia, do órgão local.
A direção do presídio não é privatizada, é do Estado. O fato de terceirizar serviços tira responsabilidade do Estado pelo ocorrido?
FLÁVIA PIOVESAN Eu não li o contrato. Sou sou comedida. É preciso ler o contrato. Não tenho elementos para dizer qual era o alcance da responsabilidade da Humanizzare, mas, independentemente do alcance da responsabilidade dela, fosse apenas sobre a parte de ‘hotelaria’, fosse sobre qualquer outra, isso não inibe a responsabilidade do Estado do Amazonas em fiscalizar.
O que a sra. e a sua secretaria farão de concreto em relação à responsabilização? Afinal, há parentes de 56 mortos esperando alguma providência, não?
FLÁVIA PIOVESAN Nós pretendemos fazer uma primeira reunião com o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Haverá uma investigação in loco. Além disso, entraremos em contato com essa força-tarefa que o próprio Estado criou, intensificaremos o diálogo com as autoridades locais, com a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], avaliaremos o plano de ação para enfrentar essas coisas. E é importante ter uma governança capaz de aliar essas frentes todas. Cada um tem seu mandato, mas deve haver um órgão de diálogo, sem duplicidade de ação. Vamos também cobrar das autoridades locais o combate à impunidade, o dever de investigar, processar, punir e reparar [as famílias das vítimas].
No primeiro pronunciamento de Temer sobre o assunto, ele tinha o ministro da Justiça de um lado e o ministro-chefe da Casa Civil de outro. Por ser um assunto de direito humanos, a sra. não deveria estar lá?
FLÁVIA PIOVESAN O Ministério da Justiça é Ministério da Justiça e Defesa da Cidadania. Houve uma mudança institucional. Antigamente, havia ministérios das mulheres, de raça, dos direitos humanos. Depois, houve a unificação sob um mesmo guarda-chuva, e no novo governo [Temer] o Ministério da Justiça se amplia para abarcar os temas de cidadania.
Eu estou aqui [no governo] pela causa, pelo que eu puder fazer, tentando fazer as políticas de direitos humanos, tentando inovar e dar uma contribuição, mas mais importante do que a forma é o conteúdo, é ter carta branca, poder pautar os temas, ter uma equipe da minha confiança e ter liberdade de atuação. Isso eu tenho. Nunca fui alvo de cerceamento ou censura.
Esse é o maior massacre do sistema carcerário brasileiro em 24 anos. Deve ser um bom termômetro para avaliar se a sra. se sente ou não alinhada à posição do governo. A sra. considera que está tendo influência, sente que a resposta do governo é satisfatória?
FLÁVIA PIOVESAN A resposta que foi dada agora tem a ver com uma realidade emergencial, com uma resposta a curtíssimo prazo. Eu acredito que o Programa Nacional de Segurança Pública Integrada é uma contribuição, é uma resposta importante, valiosa; imperfeita, inacabada, mas importante para que tenhamos a segurança sob um enfoque integrado à diversidade sexual, de gênero, de raça, de etnia, e tantas outras.