Uma das críticas mais antigas ao feminismo é sua incapacidade de abarcar todas as mulheres em suas pautas, ficando em geral muito centrado em mulheres brancas, heterossexuais e de classe média. Daí surgiram movimentos como o feminismo negro e o transfeminismo. Agora, ganha espaço o feminismo asiático que, como o nome indica, reúne mulheres de ascendência de países asiáticos e que sofrem com estereótipos, preconceitos e fetichizações, além de serem apagadas na sociedade brasileira.
(Estadão.com, 30/03/2017 – acesse no site de origem)
Conversei com 3 ativistas da causa, todas integrantes do coletivo Lótus PWR, sobre o movimento, suas dificuldades e principais pautas. São elas:
– Tami Tahira, brasileira com ascendência uchinanchu (okinawana) e japonesa, estudante de Artes Visuais e colaboradora na página Lótus PWR – Empoderamento do Feminismo Asiático e do blog Outra Coluna.
-Caroline Ricca Lee, brasileira de ascendência sino-japonesa, fundadora da Plataforma Lótus, artista visual e pesquisadora. Estuda traduções do corpo asiático na expressão contemporânea, indumentária e feminismo na história asiática na PUC-SP.
– Juily Malani, brasileira de ascendência indiana e formada em audiovisual. Atualmente estuda cinema indiano e faz parte dos coletivos Lótus e LK, que discute diversidade sexual.
O que é feminismo asiático
Tami Tahira: É um movimento que busca equidade de gênero por meio de luta anti-imperialista e anti-patriarcal com recorte de raça (amarela e marrom). Os povos asiáticos foram extremamente explorados por colonizadores brancos, nossa história é apagada e contada da maneira exotizada e fetichenta por esse colonizador. Nós precisamos de independência na nossa luta por libertação, nosso espaço de resgate de memórias, de (re)construção da nossa história, de acolhimento e aceitação de nossos corpos não-brancos, de colocarmos nossas pautas em debate sem não-asiáticas menosprezando nosso desconforto e vivência.
Caroline Ricca Lee: O feminismo asiático é um movimento feminista que além de prever igualdade de gênero, empoderamento feminino e libertação à estruturas patriarcais vigentes tem em seu cerne a galgada de visibilidade, representatividade e inclusão étnica e racial, além do resgate cultural-histórico, luta anti-colonialista e anti-imperialista, solidariedade antirracista, busca pela decaída de estigmas sociais que prolongam situações de subserviência, objetificação, fetichização, estrangeirismo, e violências de gênero inerentes. Essa vocalização pertence à toda mulher de ascendência asiática, ou seja, etnias e ascendências provindas do Leste Asiático, Sudeste Asiático, Sul Asiático/Subcontinente Indiano, Oriente Médio e Centro-Leste Asiático; visamos principalmente fortalecer nosso percurso e construção identitária como brasileiras e nascidas/viventes na América Latina, mas também acolhendo a vivência e existência de mulheres recém-imigradas de ascendência asiática para o país.
Como se dá a opressão das mulheres asiáticas em nossa sociedade
Tami Tahira: A exploração ocidental enxerga a pessoa asiática como a Outra, a estranha, a exótica, o que desumaniza e objetifica. Essa incapacidade de entender a asiática como semelhante faz com que ela seja vista como objeto público, que tem o dever de esclarecer dúvidas preconceituosas sob o pretexto do ocidental querer “conhecer culturas diferentes”. Além da fetichização da raça/etnia, surgem perguntas extremamente invasivas e discriminatórias que não seriam feitas a uma mulher branca, como perguntar se a mulher indiana faz todas as posições do kama sutra ou querer saber a quantidade de pêlos da genitália da leste-asiática.
Ouvimos muitos “voltem para o país de onde vocês não deveriam ter saído”, há a fetichização do nosso fenótipo, a hipersexualização, o encaixe em estereótipos como o da Mãe Tigresa (mulher que cria os filhos de maneira rigorosa, frígida e cruel), Colegial (o fetiche por meninas asiáticas com aparência mais nova), Nerd (baseado na minoria modelo e na ideia de que asiáticas são assexuadas e só estudam), entre outros. Outra atitude que contribui na perpetuação dessa discriminação é ter não-asiáticos dizendo que estamos incomodadas por nada, que são problemas de mulheres mal-resolvidas.
Mulheres descendentes do Oriente Médio são vistas como terroristas ou incapazes de reagir por si mesmas, que precisam de uma salvadora branca para “libertá-las da burca”; muitas têm suas roupas questionadas e até arrancadas por pessoas que acreditam estarem libertando, sem perceber o quão colonizatório é tirar de uma mulher racializada de diáspora uma veste que expressa identidade étnica para adequá-las ao padrão branco. E mulheres de primeira geração de imigrantes são mais vulneráveis, já que o deslocamento as torna alvo de abusos sexuais pela dificuldade de acesso à informação e por não ter os mesmos direitos que um cidadão brasileiro perante às leis.
Caroline Ricca Lee: Perante opressões que mulheres asiáticas na própria Ásia sofrem, digo que fechamos os olhos para o fetiche por corpos pré-púberes e colegiais no Japão; para as denúncias de estupro e pedofilia contra militares que habitam ocupações americanas ainda em curso na Coréia do Sul e Okinawa; como a pobreza e marginalidade coloca mulheres no Sudeste Asiático, Índia e Paquistão em situações de risco, abuso sexual e tráfico humano; o infanticídio de meninas na China; o estupro como arma de guerra no encarceramento e escravidão sexual de mulheres yazidis; a educação feminina na Ásia ser escassa pois é preferível casar uma filha do que educá-la; entre tantas outras denúncias.
Como abarcar as mulheres de países tão diferentes entre si:
Tami Tahira: Cada região asiática tem diferenças nos estereótipos do imaginário ocidental. Não podemos negar que o estereótipo da imigrante japonesa é o de minoria exemplar enquanto o da chinesa é o de imigrante suja, o da filipina é o de babá, o da árabe é o de terrorista etc, e a maneira como são tratadas por causa deles difere. Entretanto, todos são estereótipos racializados, de uma maneira que estereótipos de mulheres brancas não são. O que une o feminismo asiático como movimento é a necessidade de acabar com um olhar exotizado e atitudes colonizadoras sobre nós.
Caroline Ricca Lee: A Ásia é o maior e mais populoso dos continentes, com isso não devemos e não podemos pasteurizar a existência do indivíduo dentro de sua própria condição, prevendo e fortalecendo também movimentos que visam a vocalização de mulheres do Sul-Asiático e Oriente Médio. Hoje a militância asiática tem trazido à tona vivências de pessoas que descendem do Leste Asiático, mas falado pouco das demais. A importância da compreensão do asiático como além de etnias do Leste é para lutar contra os apagamentos contínuos que calam a vivência plural, objetificando corpos e culturas, gerando um abismo entre as sociedades que compartilham geograficamente a ascendência de um mesmo continente.
Juily Mailani: Os sujeitos de ascendência asiática compartilham questões parecidas, como o “pertencimento”, histórias sobre pós-guerra, patriarcalismos, entre outros assuntos. Creio que há uma possível assimilação nas pautas e isso nos une. Contudo é preciso ter em mente que há diferenciações e que todas são importantes. Há um discrepante número entre imigrantes do leste asiático e do sul/sudeste, o que altera o poder interno de discussões dentro da militância asiática. Temos muito mais mulheres do leste asiático discutindo gênero, feminismo e raça do que mulheres indianas, árabes, etc. O que é compreensível graças aos diferentes fluxos migratórios que ocorreram no Brasil. Estamos em processo de encontrar essas diferentes etnias, unir e agregar conhecimento e força.
Como parte da diáspora indiana, compartilho de pautas específicas com pessoas “marrons” (sul asiático/sudeste e oriente médio), como a islamofobia, o uso do véu e a crença na passividade da mulher do oriente médio. Há uma associação com terrorismo (somos todas mulheres bomba) e radicalismo religioso. Outra fala recorrente é a visão deturpada que possuem sobre a Índia, como elixir espiritual (todo mundo faz ioga, é vegetariano e a vida é perfeita), onde as diferentes sexualidades são facilmente aceitas (o que é um engano monstruoso, já que práticas homossexuais são proibidas por lei) e que pessoas são alienadas e acreditam em “deuses com cabeça de elefante”. Há a visão errônea e preconceituosa sobre casamento arranjado e que toda mulher sofre violência doméstica. Ouvimos comentários preconceituosos diários baseados em estereótipos e estigmas sociais, como o aroma que exalamos, como nosso papel na sociedade, nos tornando cada vez mais “exóticas” e limitando nossas vidas sociais.