(O Estado de S. Paulo) Com mais de 60 anos de atraso, chegou enfim às livrarias “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, dissertação de mestrado pioneira de Virgínia Leone Bicudo, defendida em 1945 na Escola Livre de Sociologia e Política. Virgínia fez parte da primeira turma de mestres dessa instituição, todos eles orientados por Donald Pierson, conhecido por suas conclusões sobre a “inexistência da discriminação racial no Brasil e em especial na Bahia”. Segundo comenta a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz na resenha da obra, a jovem pesquisadora Virgínia “acabaria, porém, por desmentir o orientador, ao revelar práticas de racismo a que se viam sujeitas “populações marginais” dentre imigrantes e negros. Leia trechos do artigo:
“Virgínia abordaria a questão com rara sensibilidade, iluminando as percepções tardias da existência do preconceito por parte dos negros pertencentes a classes intermediárias; os limites ao amplo desenvolvimento de papéis sociais, econômicos e profissionais; o isolamento autoimposto por negros que alcançam projeção social e o conflito imperante numa sociedade que sempre alardeou um modelo de integração. Os relatos são fortes e em seu conjunto descrevem a pletora de formas de evitar o conflito mas também a consciência da exclusão ou a fuga da dor.”
“Mas o pioneirismo de Bicudo não se resume ao escrutínio de aspectos profundos do preconceito. Sua metodologia é também original. Ela recorre a estudos de caso, entrevistas e exames de documentos da Frente Negra Brasileira; instituição que atuou durante os anos de 1931 a 37 e editou o jornal Voz da Raça. Além do mais, numa época em que interdisciplinaridade não era adjetivo fácil, a pesquisadora trabalhou na fronteira entre Sociologia, Antropologia e Psicologia Social, mostrando como nesse mundo desigual, marcado pela competição, a discriminação age como marcador social perverso.”
“Como explica Marcos Chor Maio, em sua detalhada introdução à obra e à biografia de Bicudo, a investigação mostrava como o preconceito de cor se apresentava persistente, até mesmo quando se atenuavam diferenças sociais e de classe. O fato é que num momento em que a jovem República acenava com a igualdade cidadã, estudos como esse mostravam de que maneira a exclusão social era moeda forte e de mercado.”
“Sua pesquisa não a redimiria, porém, da dor. Conforme afirma, mesmo ocupando posições sociais mais elevadas na estrutura social, negros e pardos não estão blindados contra os atributos negativos que derivam da cor. Processos de ascensão social não imunizam marcas raciais e marginalização social.”
“E a orientanda contradisse o orientador. Se segundo Pierson, não havia preconceito na Bahia, já em São Paulo existia e muito. Cor vira elemento fundamental para explicar desigualdade social; isso num momento em que se acreditava que o preconceito subsumia-se numa situação de classe. Bicudo saiu da ESP para tomar parte ativa na história da Psicanálise em São Paulo. Nas fotos hoje reunidas num belo caderno de imagens, uma incrível alquimia se estabelece: a estudiosa negra vai ficando cada vez mais branca. Nessa estranha quimera do fotógrafo, a pesquisadora vira sujeito e objeto de sua própria investigação, numa sociedade que, condicionada pela cor, procura constantemente se branquear.”
Leia a resenha na íntegra: A perversidade da discriminação (O Estado de S. Paulo – 24/07/2011)