A imagem estereotipada do estupro, o maior dos pesadelos femininos, é mais ou menos assim: um maníaco sexual desconhecido e armado que comete o abuso num beco escuro. Mas as estatísticas mostram que esses casos são minoria entre os mais de 45 mil estupros – cinco por hora – registrados todo ano no Brasil.
(Revista Claudia, 25/04/2017 – Acesse o site de origem)
Segundo um estudo do Instituto Patrícia Galvão de dezembro passado, crimes sexuais cometidos por desconhecidos representam cerca de 25% das ocorrências. Nos outros 75%, o agressor é do convívio da vítima: pai, padrasto, namorado, amigo, marido.
“Em geral, eles são o que a sociedade chama de ‘homens de bem’, mas no fundo não respeitam regras nem negativas”, afirma o psicólogo Sergio Barbosa, que há 20 anos trabalha num projeto de responsabilização de autores de violência contra a mulher. “Os parceiros abusam da frase ‘Se não fizer isso comigo, vou procurar quem faça’, e ela se sente obrigada a ceder.”
Ter relação sexual sem desejar é estupro. Satisfazer o homem sob ameaça de ser deixada é estupro. Acordar na casa do namorado dopada, cheia de esperma e sem ideia do que aconteceu é estupro. Esse crime nem sempre é bruto ou deixa marcas como um olho roxo. Também pode vestir uma personalidade romântica, sedutora, embalada por vinho tinto e Marvin Gaye no iPod da sala.
Ele é democrático. Presente em todos os países do mundo, pode ser cometido por um homem inteligente, bonito, bem-sucedido, do aplicativo, mas que é capaz de transformar seu quarto no mesmo beco escuro que você teme. “Estupro é qualquer penetração, ato libidinoso ou a tentativa de um desses atos praticados sob violência ou grave ameaça”, resume a defensora pública Ana Rita Prata, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo. “E violência pode ser de qualquer tipo: física, emocional, verbal e psicológica.”
Reforçar essa definição é ainda mais importante agora que a Câmara dos Deputados tenta passar um projeto de lei reduzindo a pena para estupro de vulnerável (menores de 14 anos ou quem não tem discernimento para a prática do ato ou não pode oferecer resistência) que não envolva penetração e sexo oral. Trata-se de proposta do deputado Fábio Ramalho (PMDB-MG), incluída em parecer do projeto apresentado pela senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), que pretende aumentar a punição para a divulgação de crimes sexuais e estupro coletivo.
(Arte: Debora Islas/Getty Images)
Na contramão de avanços, Ramalho tenta retomar uma legislação semelhante à que vigorava antes de 2009. Até então, somente quando havia penetração o acusado era enquadrado por estupro. Se o projeto dele for aprovado, em vez de prisão de seis a 12 anos (chegando a 30 em caso de morte da vítima), o condenado ficará preso apenas dois anos e oito meses.
A mudança ainda está em debate, mas já tem o aval de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – sob a justificativa de que a lei atual é “desproporcional” e acaba não sendo aplicada por juízes das primeiras instâncias, que muitas vezes enquadram o condenado em crimes de pena menor ou os absolve.
Carregar consigo a definição desse crime, assim como você leva um documento de identidade na carteira, portanto, é a principal arma para se prevenir dele. Para a representante do Escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, ter consciência dos vários tipos de estupro é essencial para evitar que ele seja normalizado.
A empreendedora social Nill Santos, 46 anos, demorou para perceber que o marido, com quem era casada havia dez anos, a estuprava. Um dia Nill chegou do trabalho e ele a esperava de cueca na cozinha. “Disse que iria me usar de todas as formas. Ainda choro quando lembro.” A violência extrema a ajudou a criar coragem para sair de casa e a fundar uma ONG para informar sobre diferentes tipos de violência doméstica.
Idealizada em 2012, a Associação de Mulheres de Atitude com Compromisso Social já promoveu rodas de conversa com mais de mil pessoas, o que rendeu a Nill a indicação ao Prêmio CLAUDIA no ano passado. “A maioria das mulheres que atendemos ainda não sabe que é vítima”, conta. “E muitos homens também não têm noção de que são estupradores porque acham normal o que fazem.”
O estupro se alimenta do machismo para agir em silêncio. Às vezes, é cometido sem que vítima e agressor se sintam nesse papel. Isso porque os discursos que legitimam o desejo do homem sobre o da mulher estão introjetados em ambos os gêneros. “Eles têm muita dificuldade em admitir que cometeram abuso; isso leva tempo”, afirma Sergio Barbosa, da Tempo de Despertar, que realiza rodas de conversa em que homens de todas as classes sociais refletem sobre seus casos.
Segundo o especialista, a primeira reação deles é jogar a responsabilidade na mulher. “Tendem a dizer que ela se insinuou e que não conseguiram se segurar.” O programa tem dado resultado. “A reincidência de violência sexual caiu de 87% para 9% depois de 14 encontros”, diz Barbosa.
Muito Mais Relatos
Ainda há muitas dúvidas sobre o que é violência sexual: 53% dos atendimentos do Ligue 180, serviço gratuito de atendimento à vítima de violência, são pedidos de informação. “Na primeira ligação, as mulheres querem apenas entender o que aconteceu com elas. Na segunda, ligam para denunciar”, afirma a secretária especial de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes.
A cada ano, a central registra um número maior de relatos de estupro, que hoje representam 4,3% do total – a maioria (51%) é de violência física. As denúncias ao 180 aumentaram dez vezes na última década. Em 2006, o serviço atendia 250 casos por ano. Em 2015, foram 2,7 mil. Só no primeiro semestre de 2016, 2.457.
Essas estatísticas não mostram, necessariamente, que o estupro aumentou no Brasil, mas que as mulheres estão mais corajosas para relatar um crime que sempre foi pouco ou quase nada denunciado. Estigma, vergonha, medo de sofrer represálias do agressor e até culpa são as maiores mordaças. Por isso, ele está entre os crimes mais subnotificados do Código Penal brasileiro.
“O aumento das denúncias tem de ser comemorado porque estamos tirando a sujeira de debaixo do tapete”, diz Juliana de Faria, fundadora do Think Olga, plataforma online de empoderamento feminino. Vários fatores ao longo da última década motivaram a vítima do estupro a quebrar o silêncio.
Criada em 2006, a Lei Maria da Penha foi a primeira grande iniciativa nacional para descortinar o tema. Ela deu popularidade à causa. Com ela, vieram também as delegacias da mulher, políticas públicas e programas específicos de combate à violência de gênero. O Ligue 180 surgiu para garantir acolhimento sem que a vítima precisasse se apresentar – e se expor – pessoalmente à polícia.
A combinação de campanhas nas redes sociais e manifestações nas ruas foram determinantes para dar voz às mulheres. “É como um dominó: alguém tem que ter a coragem de derrubar a primeira peça para que as demais caiam”, afirma Juliana de Faria.
Desde que foi criado, em 2013, o Think Olga lançou duas campanhas nacionais contra a violência sexual, a Chega de Fiu Fiu (2013) e a #PrimeiroAssedio (2015). A última hashtag foi replicada mais de 86 mil vezes no Twitter, onde mais de 3 mil histórias foram compartilhadas apenas na primeira hora após seu lançamento. A campanha de CLAUDIA #TemQueFalar foi outra que incentivou uma série de relatos de leitoras e seguidoras, muitas vezes com pedido de anonimato.
Celebridades também ajudam a transformar casos em denúncias. “Toda vez que uma famosa decide falar sobre o estupro que sofreu, o serviço 180 tem picos de chamadas”, afirma Fátima Pelaes. Xuxa, a cantora Pitty, a atriz Claudia Jimenez e, mais recentemente, a atriz Gisele Itié e a ex-BBB Bella Maia vieram a público para narrar suas histórias de horror.
Precisamos falar
Apesar dos avanços, há um longo caminho pela frente. “Uma vítima a cada 12 minutos ainda é um dado terrível que nos confronta com uma conclusão inevitável: toda mobilização não tem sido suficiente; é preciso mais e é urgente”, diz a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero, organização feminista não governamental.
A mulher está sob risco de ser estuprada ao longo de toda sua vida (veja quadro no final da matéria). A infância e a adolescência são as etapas de maior vulnerabilidade – estudo do Ipea mostra que 70% das vítimas que chegam aos serviços de saúde são crianças e adolescentes.
Nesse caso, o risco de o crime ser recorrente é 3,4 vezes maior. “Não tinha referência do que era aquilo”, conta a autônoma Kharine Martins, 34 anos, que foi estuprada pelo pai aos 9. “Doeu muito. Passei a ser compulsiva por sexo e não me envolvo facilmente com os homens.”
As campanhas têm de levar em conta essa variabilidade de tipos de estupro e de público se quiserem motivar novas denúncias. Além disso, é importante garantir um ambiente seguro para acolher o relato da mulher sem questioná-la, culpá-la ou revitimizá-la, desde o hospital, passando pela delegacia e até pelo fórum que vai julgar o processo.
“Quando ela decide procurar um desses serviços, precisa ter confiança em quem a ouve”, diz o juiz Marcelo Salmaso, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Associação dos Magistrados Brasileiros.
Autoridades que desconfiam da versão da vítima ainda são comuns. Isso acontece porque o machismo está entranhado também nas instituições. “Ao verem sua moralidade questionada, muitas vítimas desistem da denúncia ou encerram o caso”, relata o promotor Thiago Pierobom de Avila, do Ministério Público do Distrito Federal. Se não bastasse isso, as delegacias especializadas cobrem apenas 8% dos municípios brasileiros.
“A polícia tem perito para atestar que o vidro de um carro foi quebrado num furto, mas não para avaliar cena de um crime de violência sexual”, diz a defensora pública Ana Rita Prata. É preciso investir em exames de DNA e em bancos de amostras de sangue de criminosos, facilitando a identificação do agressor.
Hoje quase 7 mil pessoas cumprem pena por estupro no Brasil. Não se sabe quantos casos terminam em feminicídio porque o crime é computado como homicídio doloso. Mas as taxas de reincidência em geral são altas.
“É preciso falar sobre gênero na escola, para que meninos, desde pequenos, aprendam outra masculinidade, não violenta às mulheres”, afirma a antropóloga Débora Diniz. Afinal, educar meninos e meninas, mulheres e homens é a única forma efetiva de combater o horror desses números crescentes.