Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, no mundo, 22 milhões de abortos são realizados de forma insegura todos os anos, resultando na morte de aproximadamente 47 mil mulheres e na incapacidade ou adoecimento de cerca de outras cinco milhões. No Brasil, além de ferir o direito à saúde, a criminalização do aborto atinge desproporcionalmente as mulheres em condições de vulnerabilidade econômica e social – numa clara ofensa ao princípio da igualdade. Não por acaso, tratados internacionais e compromissos assumidos pelo Estado brasileiro reforçam a necessidade da adoção de medidas para a prevenção de abortos inseguros e para que seja respeitado o direito das mulheres à autonomia para as decisões sobre sua saúde sexual e reprodutiva.
(Portal MPF, 10/05/2017 – Acesse o site de origem)
Essas e outras informações integram um conjunto de argumentos que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, encaminhou ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para subsidiar o parecer que deve ser apresentado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, que tramita no Supremo Tribunal Federal.
A ação foi ajuizada no STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pede que a Corte declare inconstitucionais os artigos 124 e 126 do Código Penal – que criminalizam o aborto no Brasil. No texto, o PSOL defende que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, visto que violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.
Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a criminalização do aborto, tal como prevista no Código Penal, é incompatível com o princípio da dignidade humana, que tem centralidade na ordem constitucional brasileira, inclusive porque constitui vetor de compreensão e alcance de todo o sistema jurídico.
“Além de violar direitos fundamentais das mulheres previstos na Constituição Federal, a criminalização do aborto também está em desacordo com diversos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, tais como o Plano de Ação da Conferência do Cairo de População e Desenvolvimento (1994), a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher de Pequim (1995), e o Consenso de Montevidéu decorrente da Primeira Conferência , Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (2013)”, ressalta o texto, assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, em conjunto com o Grupo de Trabalho Direitos Sexuais e Reprodutivos, da PFDC.
Direitos do nascituro – O documento encaminhado ao procurador-geral da República defende o caráter não absoluto e sim gradual da proteção jurídica conferida ao desenvolvimento fetal e embrionário, apontando que há reflexão jurídica e médico-científica bastante amadurecida no sentido de que a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana é um critério acertado para resolver a colisão de interesses entre os direitos da mulher e aqueles da vida intrauterina. “Esse conjunto de reflexões traz consenso de que, antes da formação do córtex cerebral – que só acontece no segundo trimestre da gestação – não há propriamente pessoa, já que o nascituro é incapaz de sentimento e pensamento”. Decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, do Tribunal Constitucional em Portugal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pautaram por essa perspectiva.
Números no Brasil – Ainda como forma de subsidiar a análise da ADPF, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão reforçou junto ao procurador-geral da República que a interrupção da gravidez em condições clandestinas constitui a quarta causa de mortalidade materna no Brasil. “Especificamente, o abortamento é a primeira causa de óbito materno em Salvador desde 1990 e a terceira em São Paulo. Mulheres negras teriam maior risco de morrer do que as brancas, por serem mais pobres e por enfrentarem maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde de qualidade”, informa o texto.
Políticas públicas – Além de impactar desproporcionalmente mulheres pobres, negras e que vivem nas regiões Norte e Nordeste, dados da Pesquisa Nacional sobre Aborto 2016 mostram que metade das mulheres que fez um aborto ilegal no Brasil precisou ser internada , “o que constitui um adoecimento desnecessário, além do impacto nos recursos públicos de saúde”, alerta a PFDC. Ainda no que se refere às políticas públicas na área, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão reforça a necessidade de uma educação que invista na igualdade de gênero, mas que o Estado brasileiro tem atuado na contramão dessa diretriz – inclusive com a nova proposta de Base Nacional Comum Curricular apresentada pelo MEC, que exclui referências a questões relacionadas a identidade de gênero e orientação sexual.