O abismo que separa os salários de homens e mulheres no Brasil dobra nos primeiros 15 anos de carreira, e as interrupções frequentes na jornada das profissionais mais produtivas explicam boa parte da diferença.
(Folha de S.Paulo, 14/05/2017 – Acesse o site de origem)
A conclusão é de um estudo inédito que analisou informações de trabalhadores com registro formal para investigar as razões do aumento da distância entre os homens e as mulheres no país.
Segundo os autores, os economistas Eduardo Fraga (Universidade Yale), Gustavo Gonzaga (PUC-Rio) e Rodrigo Soares (Universidade Columbia), a diferença na remuneração por hora começa em 15%, por volta dos 21 anos, e aumenta para 34%, aos 36.
A jornalista Luisa Barbosa, 35 e seus filhos, de 1 ano e 3 anos, em seu apartamento/ Eduardo Knapp/Folhapress
Ou seja, para cada R$ 100 ganhos por um homem na sua estreia profissional, uma mulher com as mesmas características recebe R$ 85. Uma década e meia depois, sua remuneração equivale a R$ 66 para cada R$ 100 do homem.
Os autores do estudo compararam trabalhadores com escolaridade, ocupação e tempo de serviço semelhantes para chegar a essa conclusão, usando o banco de dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais).
Segundo seus cálculos, as pausas nas carreiras das mulheres mais produtivas -e mais bem remuneradas- são responsáveis por 32% do aumento da diferença salarial entre homens e mulheres.
A pesquisa não determina outras explicações para o salto, mas a hipótese dos economistas é que nessa conta entrariam fatores como a discriminação de empregadores ao definir salários e promoções.
“Não dá para dizer que o preconceito explica os 68% restantes do aumento da diferença salarial, embora ele esteja aí dentro. O que dá para dizer é que o preconceito é substancial”, diz Gonzaga.
TALENTO INDIVIDUAL
Os economistas examinaram a evolução profissional do grupo de homens e mulheres nascidos em 1974 e construíram uma espécie de indicador de talento individual.
A ideia é que a diferença salarial entre pessoas com escolaridade, tempo de serviço, setor e outras características iguais se deve em alguma medida a outras habilidades que as tornam mais produtivas.
Entre elas, podem estar traços da personalidade, como a persistência, e a qualidade da educação que receberam.
Partindo dessa hipótese, os pesquisadores notaram que a presença dessas mulheres mais habilidosas no mercado se reduz bem mais do que a dos homens mais produtivos no início da vida profissional.
Os autores especulam que a saída mais frequente pode estar associada à maternidade e ao fato de que essas profissionais se casam com homens com características parecidas e remuneração maior.
Pesquisadores que analisaram as carreiras de executivos com diplomas da Escola de Negócios Booth, da Universidade de Chicago, entre 1990 e 2006, encontraram outras evidências nessa direção.
Segundo eles, logo após a conclusão do curso a diferença salarial entre graduados dos dois sexos é quase inexistente. Com a passagem do tempo, ocorre um salto na remuneração dos homens, em relação à das mulheres.
É um fenômeno que parece ligado à maternidade. Após 15 anos do fim do curso, as mulheres com filhos têm experiência cerca de oito meses menor que a dos homens, e trabalham, em média, 24% menos horas por semana.
Outro achado dos pesquisadores é que o impacto da maternidade na carreira das mulheres é mais evidente para profissionais com MBA cujos maridos ganham mais.
O que os estudiosos ainda não sabem é por que as mulheres desaceleram e em que condições isso poderia ser diferente. Outra questão em aberto é se essas profissionais decidem sair ou se são demitidas e optam por não voltar.
“É importante investigar essas questões até para desenhar políticas que incentivem a permanência feminina no mercado”, diz Soares, um dos autores do estudo brasileiro.
Salários maiores do marido podem facilitar as coisas para algumas mulheres, mas a dinâmica do mercado talvez seja fator mais relevante.
Essa é a opinião de Regina Madalozzo, pesquisadora do Insper. Para ela, a percepção de que, em algum momento, esbararão em limites ao desenvolvimento de sua carreira é um dos motivos que levam mulheres a desacelerar.
LONGE DO TOPO
Um dos sinais dessa barreira seria a pouca presença feminina na gestão das empresas. Segundo a consultoria McKinsey, em 2011 as mulheres ocupavam 5% das cadeiras nos conselhos de administração de 141 companhias de capital aberto.
Mesmo empresas com incentivo às mulheres têm baixa representação feminina.
De 144 companhias analisadas pela consultoria Great Place to Work em seleção das melhores para as mulheres trabalharem no Brasil, 84 foram barradas no quesito “ter, no mínimo, 15% de mulheres em cargos de gestão”.
“O custo de continuar investindo na carreira, sem perspectiva de retorno, fica muito alto”, afirma Regina. Isso não ocorre só com mães, embora a chamada “penalidade pela maternidade” pareça frequente.
A economista Cássia de Souza Brito, 39, viveu isso ao ficar grávida depois de dois anos como coordenadora de marketing de uma empresa.
Temendo ser demitida, ela se ofereceu para trabalhar de casa durante a licença-maternidade. “Tive meu filho na madrugada de sexta para sábado. Na segunda, já estava respondendo a e-mails e poucos dias depois participando de reuniões. Até viagem de um dia eu fiz nesse período.”
A dedicação durante a licença e após o retorno não impediu que fosse demitida quatro meses após o fim da licença. Cássia busca agora recolocação, mas, com o apoio do marido, prefere um emprego com condições mais flexíveis.
“Adoro trabalhar, mas o ambiente corporativo é muito cruel com a mulher, e com a mãe principalmente”, diz.
Para Regina Madalozzo, experiências como a de Cássia acabam influenciando as decisões de muitas mulheres em relação às suas carreiras.
Numa pesquisa com nove grandes empresas, a economista identificou que pedidos de demissão entre mulheres de 35 anos, em posições de diretoria júnior, são muito mais frequentes do que entre homens na mesma situação.
A advogada tributária Carla Marchesini, 36, foi uma que preferiu deixar o emprego depois que o filho, hoje com um ano e nove meses, nasceu. “Achava que conseguiria seguir com os dois [o bebê e o trabalho]. Mas a realidade se impôs de outra forma”, diz.
Ela conta que passou muito mal durante toda a gravidez e percebeu que, no emprego, “não entendiam bem sua situação”. A falta de incentivo à amamentação foi outra causa de desânimo.
Zanone Fraissat/Folhapress | ||
A advogada Carla Marchesini, que parou de trabalhar após o nascimento do filho |
JORNADA DUPLA
Nas últimas décadas, houve uma convergência nos papéis que homens e mulheres desempenham.
Elas aumentaram sua escolaridade-no Brasil, as mulheres têm mais anos de estudo do que os homens- e sua participação na força de trabalho. A diferença salarial entre homens e mulheres também tem caído de geração para geração, embora essa tendência tenha perdido fôlego em anos recentes.
Mas desequilíbrios permanecem. Um deles é consequência da chamada “jornada dupla” feminina. Embora os homens tenham assumido mais tarefas, a carga horária da mulher na casa e com os filhos permanece bem maior.
Segundo Claudia Goldin, uma das autoras de estudo sobre profissionais com MBA em Chicago cujos maridos têm salário maior, para que a tendência de maior equidade entre os gêneros prossiga é preciso que o mercado ofereça maior “flexibilidade temporal” aos seus funcionários.
“Se a mulher, em particular, sai [do emprego] porque não consegue combinar família e trabalho, então as empresas perdem”, disse.
Em uma pesquisa sobre o assunto, ela ressalta que as horas de trabalho em muitas ocupações são mais valorizadas se forem cumpridas em determinados momentos e de forma mais contínua.
Isso tende a penalizar as mulheres com filhos.
“As mulheres não deveriam ter de se adequar ao trabalho após a maternidade. As empresas é que deveriam entender que elas mudaram”, diz Luisa Barbosa, 35.
Segundo a jornalista, foi essa compreensão por parte da Conspiração Filmes, onde trabalha há 12 anos, que lhe permitiu seguir na carreira após os dois filhos nascerem.
Luisa conta que trabalha muitas horas por dia, mas tem flexibilidade para, por exemplo, buscar os filhos na escola e ir almoçar com eles.
E, em muitos dias, consegue sair a tempo de colocá-los para dormir mesmo que volte a trabalhar de casa.
Em janeiro, foi promovida a chefe comercial da área de publicidade da empresa.
“Acho que, após a maternidade, a mulher começa a olhar o mundo corporativo de forma mais humana. Isso é positivo para o negócio”, diz.
A visão é compartilhada por Lídia Abdalla, 43, principal executiva do Laboratório Sabin, eleito pela GPTW a melhor empresa com mais de mil funcionários para a mulher trabalhar no Brasil.
A empresa tem 74% de participação feminina em cargos de gestão e oferece vantagens como alocação das profissionais com filhos na unidade mais próxima de casa.
“Muitas empresas ainda pensam que as mulheres serão menos produtivas depois da maternidade. Mas se elas estão felizes no trabalho e sentem valorizadas, ocorre o oposto disso”, diz Lídia, que tem um filho de nove anos.