De marcha pequena, em 1997, evento explodiu em engajamento político, cor e música. Encontro foi vanguarda no movimento de ocupar o principal cartão postal da cidade
(El País, 16/06/2017 – acesse no site de origem)
Há 20 anos, Nelson Matias decidiu celebrar o dia oficial do orgulho gay ocupando a rua. Junto com o namorado e cerca de mais 2.000 pessoas, ele saiu pela avenida Paulista carregando um bandeirão arco-íris reivindicando direito, cidadania e respeito. Nascia naquele sábado, 28 de junho de 1997, a primeira parada LGBT de São Paulo. “Foi histórico. Rompemos definitivamente com o silêncio. Saímos do gueto e ocupamos a avenida mais simbólica da cidade. A partir dali, a gente disse à sociedade que existíamos e ocupamos um espaço”, conta Matias, que é cofundador da parada e, na época, acabara de completar 30 anos.
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No ano anterior, a comunidade brasileira de lésbicas, gays, bissexuais e transgênero, atenta às marchas que aconteciam nos Estados Unidos e Europa, já tinha dado os primeiros passos para organizar a passeata, nos moldes que conhecemos hoje, em um ato mais tímido que conseguiu reunir 500 pessoas na praça Roosevelt, no centro da cidade. O movimento foi organizado por vários coletivos de esquerda, mas principalmente pelo grupo Corsa (Cidadania, orgulho, respeito e solidariedade).
Nas últimas duas décadas, entretanto, muita coisa mudou e a parada ganhou outra proporção e virou um marco sobre ocupação do espaço público da cidade, antes mesmo da explosão dos protestos de junho de 2013, das megamanifestações a favor e contra o impeachment e do ressurgimento do Carnaval de rua. A Parada deixou para trás um pequeno carro de som e ganhou dezenas de trios elétricos. A marcha aumentou substancialmente de tamanho, agregou públicos diversos e entrou definitivamente para o calendário oficial de São Paulo. Em 2006, a parada gay atingiu a marca de 2,5 milhões de participantes, segundo a Polícia Militar, e entrou para o Guiness Book – o livro dos recordes – com o título de maior marcha pela causa gay do mundo. De lá pra cá, a sociedade também passou a discutir mais os direitos da comunidade LGBT, que colecionou algumas conquistas nos últimos 20 anos.
“A única coisa que não mudou foi o preconceito. Ele não diminuiu. As pessoas continuam sendo mortas, agredidas e expulsas do lar por conta da sua orientação sexual. É claro que hoje discutimos mais sobre a causa LGBT, temos mais espaço na mídia e os jovens podem se assumir mais cedo, mas ainda há uma exclusão”, diz o cofundador da marcha.
Se antes a parada era masculina, branca e gay, hoje ela se diversificou, misturou.”Ela deixou de ser elitista e acabou virando um evento da cidade. As pessoas se preparam para ir, seja gay ou hétero, é muito plural. Tem o gay da periferia e os do Jardins [bairro nobre de São Paulo], muitas mulheres, todas as tribos juntas”, conta. Na opinião do cofundador foi exatamente esse pluralismo que produziu tamanho sucesso da marcha, ainda que Matias confesse que dentro do evento há um preconceito da classe mais rica com a chegada da periferia negra ao movimento.
A diversificação e a proporção que o evento tomou também acarretaram alguns problemas pontuais, como brigas, roubos e a presença de grupos de homens heterossexuais que aproveitam a passeata para assediar lésbicas. “A maioria das pessoas, no entanto, quer celebrar, estar entre iguais, dançar e ouvir os gritos a favor da comunidade, ainda que não tenha ainda tanto para comemorar. Elas pensam aqui eu posso, aqui eu sou”, explica.
Uma crítica recorrente escutada pela organização da Parada, nos últimos anos, é de que o acontecimento virou um grande carnaval fora de época e que o movimento perdeu sua repercussão política. “Falam do carnaval por causa das fantasias e da música, mas não é demérito nenhum. É uma das maiores manifestações populares que temos no país. Continuamos levantando nossa bandeira”, diz Matias.
O evento se tornou tão importante no calendário da cidade que muitos turistas chegam de outros Estados e também do exterior. No ano passado, atrizes da série Orange Is The New Black foram uma das atrações da passeata. De acordo com dados da prefeitura, a Parada do Orgulho Gay tem impacto financeiro grande na cidade, de cerca de 100 milhões na economia de São Paulo. Parte da infraestrutura, como banheiro químico, segurança e gradeamento, cabe à Prefeitura de São Paulo, que gasta cerca de 1,4 milhão na marcha, segundo a organização.
O formato da parada é um dos diferenciaIs para o sucesso da marcha brasileira. “Aqui tudo é misturado, em outros lugares como nos Estados Unidos, ela é mais segmentada, e também as pessoas vão assistir ao desfile, há uma separação. Aqui é uma festa, todo mundo junto”, explica o cofundador.
Na visão de Matias, apesar da luta por direito iguais ter gerado conquistas à comunidade LGBT nos últimos anos- como a adoção por casais homoafetivos e o direito dos travestis e transexuais usarem o nome social – muitos delas permanecem ainda apenas no campo jurídico. Sem amparo legal, os casais gays só conseguem a equiparação de direitos dos seus relacionamentos com os de heterossexuais, por exemplo, na Justiça. “Isso não pode ser confundido com igualdade de direito. Não pode haver uma dicotomia: uns podem mais que os outros. O Judiciário está a anos luz do Legislativo”, diz.
Para Claúdia Regina dos Santos, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT (APOGLBT), organizadora do evento, grande parte das pautas LGBT tem sido barrada por outro movimento que cresceu junto à parada gay nos últimos anos: o religioso. “Os movimentos religiosos cresceram dentro do poder. A bancada evangélica, por exemplo, está ganhando muita força. O retrocesso pode ser grande”, afirma.
Apenas dias antes da Parada Gay costuma acontecer em São Paulo a Marcha para Jesus. Considerada uma das maiores manifestações religiosas do mundo, ela já foi palco de declarações bastante polêmicas contra a união de casais gays e a criminalização da homofobia. Os pastores Marco Feliciano e Silas Malafaia – conhecidos por suas posições contrárias à comunidade homossexual- são presenças constantes no evento.
“Uma coisa são algumas igrejas e movimentos ficarem no nosso pé, o outro é um grupo com determinada religião dominar a esfera legislativa e serem contra nossas pautas por uma questão religiosa, do que eles consideram certo ou errado”, explica. A preocupação com a intervenção da bancada evangélica no Legislativo fez a associação da Parada escolher a defesa do Estado laico como tema da marcha deste ano, que acontece neste domingo: “Independentemente de nossas crenças, nenhuma religião é lei. Todos e todas por um estado laico”.
A expectativa dos organizadores é a que a parada alcance neste ano um público de 3 milhões de pessoas. Participarão do evento 19 trios elétricos e destaques da musica brasileira como as cantoras Daniela Mercury e Anitta. A concentração começa às 10h em frente ao Masp, na avenida Paulista, de onde a parada seguirá pela rua da Consolação até o Anhangabaú.
Heloísa Mendonça