Elas podem ser aprovadas como moeda de troca por votos nas reformas trabalhista e da previdência
(AzMina, 03/07/2017 – acesse no site de origem)
Enquanto todos os nossos olhos estão virados para a corrupção, na surdina, deputados conservadores têm feito avançar suas festas particulares. Ruralistas têm afrouxado a proteção da Amazônia enquanto outros aproveitam para atacar os direitos reprodutivos das mulheres. Masra de Abreu, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, alerta para o poder de barganha que essas bancadas têm neste momento. “Sabemos que o Congresso praticamente não funcionou neste primeiro semestre para outras matérias que não fossem reforma trabalhista e reforma previdenciária, nós temos de prestar atenção no que será moeda de troca nesse processo das reformas, para uma bancada fundamentalista, que tem como agenda a criminalização total do aborto.”
Mapeamos as principais ameaças.
1 – Ataque na Constituição
Das propostas de lei que estão tramitando, vale ficar de olho, especialmente, na PEC 29/2015, que acrescenta à Constituição o direito à vida “desde a concepção”.
Para os bons entendedores, já fica claro que a proposta é uma tentativa de finalizar a abertura da legislação para a descriminalização ou legalização do aborto.
A PEC é de autoria conjunta de 27 senadores, entre eles Magno Malta (PR), expoente da extrema direita no Senado, autor de projetos como o Escola Sem Partido, Aécio Neves (PSDB), afastado do mandato pelo STF sob suspeita de tentar obstruir a Operação Lava Jato, Ricardo Ferraço (PSDB), relator da reforma da trabalhista, e Paulo Paim, articulador da resistência contra as reformas trabalhista e da previdência. No último dia 16 de maio, o senador Eduardo Amorim (PSDB), responsável por analisar se a proposta, apresentou seu relatório à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, recomendando sua aprovação.
Com a alteração, o texto constitucional ficaria da seguinte forma, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Se for aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a PEC segue para fila das propostas que esperam votação em plenário, onde precisa ser votada em dois turnos e, se aprovada, fazer o mesmo caminho na Câmara dos Deputados.
Não há uma ordem rigorosa para as propostas serem votadas no plenário do Senado, quem decide são os senadores líderes de bancada junto com o presidente da Casa. Por isso, mesmo que o caminho pareça longo, pode ser encurtado pela vontade política dos representantes do povo.
2 – Contra-ataque ao Judiciário
Mas a PEC 29 não está só. Outra tentativa de retrocesso está em impedir avanços alcançados pelo Judiciário. Em novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu descriminalizar o aborto no primeiro trimestre da gravidez por entender que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto são inconstitucionais.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, a criminalização do aborto no primeiro trimestre viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, o direito à autonomia de fazer suas escolhas e o direito à integridade física e psíquica.
O entendimento valeu apenas para o caso concreto julgado naquele momento, mas abriu precedente para o futuro. Na madrugada do dia 30 de novembro, depois de conversar com alguns líderes partidários, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), anunciou a instalação de uma comissão especial para analisar – e possivelmente reverter – a decisão do STF. Ele justificou que adotaria esse procedimento sempre que o STF legislasse no lugar da Câmara.
3 – Cavalo de Troia
Algumas horas depois, a PEC 58/2011, posteriormente apensada à PEC 181/2015, que estava parada desde 2013, passou a tramitar em uma comissão especial. Na prática, isso acelera o andamento das propostas no Congresso. O assunto dessa proposta, no entanto, não era a interrupção da gravidez, mas a extensão da licença maternidade em casos de bebês prematuros. Olha o pulo do gato: fazem de conta que estão concedendo um direito, mas no fundo querem garantir direitos a fetos e vetar avanços que viessem pelo Judiciário.
Masra de Abreu, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, chama a comissão especial da PEC 181/2015 de “cavalo de troia”. “A PEC 58 (ou PEC 181) tem um teor que a priori seria uma coisa positiva para as mulheres, mas que eles devem mudar o texto para inserir a defesa da vida desde a concepção, em um bojo que teoricamente passaria despercebido”, avalia.
A deputada Érika Kokay (PT/DF) reagiu: apresentou uma questão de ordem questionando a legalidade de se incluir esse assunto na PEC. Para Érika, o assunto não tem correlação com o tema da licença maternidade em casos de bebês prematuros, e temas diferentes não deveriam ser tratados na mesma proposta de emenda à constituição.
O presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida da Família, e membro da comissão, deputado Alan Rick (PRB/AC) contesta esta leitura. “O bebê prematuro já tem direitos garantidos pelo código civil; o bebê no ventre já tem garantia por lei de direitos como herança e sucessão, quando debatemos a questão do nascituro, que são esses bebês que já têm direitos, estamos apenas regulando algo que o código civil já contempla. Isso é aproveitar uma matéria que versa sobre um direito e defender esse bebê no ventre de sua mãe”, argumenta o deputado.
O relator da PEC 181, deputado Jorge Tadeu (DEM) deve defender, em seu relatório, a inclusão da expressão “vida desde a concepção” na Constituição. A expectativa é que o relatório seja apresentado ainda no mês de julho. Ele faz parte da bancada evangélica e recebeu abertamente o apoio da Igreja Internacional da Graça em sua campanha eleitoral. Em 2007, ele foi responsável pelo arquivamento de outra proposta que descriminalizava o aborto.
“Abrir uma comissão especial não é fácil, há centenas de projetos na fila para isso, é preciso ter um poder político frente ao presidente da Câmara muito grande. A abertura da comissão foi um posicionamento do poder que a bancada fundamentalista tem dentro do Congresso Nacional”, analisa Masra de Abreu.
O deputado Alan Rick, mensura que, somadas, a bancada em defesa da vida, a bancada evangélica e a bancada católica alcançam 400 deputados num universo de 513.
4 – Castigo aos médicos
Talita Vitor, assessora parlamentar da liderança do PSOL na Câmara dos Deputados, lembra outras três propostas com objetivo de restringir ou proibir o direito ao aborto. A mais adiantada é o projeto de lei 5069/2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que teve o mandato cassado em setembro de 2016 e está preso preventivamente desde outubro do ano passado. A proposta prevê pena de detenção por até quatro anos para quem auxiliar uma mulher a cometer aborto ou der informações sobre interrupção de gravidez, mesmo que num contexto de redução de danos.
Se aprovada, irá impor uma séria restrição ao trabalho dos profissionais de saúde mesmo nos casos de aborto previsto em lei. Seu último andamento foi em outubro de 2015, quando teve parecer favorável aprovado na CCJ e foi enviada para o plenário da Câmara, onde pode ser votada a qualquer momento, dependendo da vontade política da qual já tratamos.
5 – Objeção de consciência
Na mesma linha e na mesma situação está o projeto de lei 6335/2009, do deputado Gonzaga Patriota (PSB/PE), que regulamenta a objeção de consciência, isto é, a possibilidade de um profissional de saúde se recusar a praticar um ato que colida com suas convicções morais, éticas e religiosas. Caso a proposta seja aprovada, mesmo se for o caso de um aborto legal em caso de estupro, é possível que não haja médicos que aceitem realizar o procedimento no serviço público. O relator deste projeto na Comissão de Constituição e Justiça foi o deputado João Campos (PSDB/GO), ex-presidente da bancada evangélica.
6 – Combo
As outras duas propostas são o PL 478/2007, conhecido popularmente como Estatuto do Nascituro, de autoria dos ex-deputados Luiz Bassuma (PT) e Miguel Martini (PHS), e o PL 169/2012, cujo autor também é Eduardo Cunha, em conjunto com o deputado João Campos, e que tenta, assim como a PEC 29/2015, instituir a inviolabilidade da vida desde a concepção no artigo quinto da Constituição. Ambas esperam parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
7 – Disputa de narrativa
Ana Maria* descobriu que estava grávida no final de um relacionamento de oito anos e realizou ao aborto com a auxílio do outro genitor. “Eu já tinha uma filha de 3 anos, já era um peso cuidar dela sozinha, eu sabia que a atitude dele não ia mudar, ele não ia passar a me ajudar mais. Eu tinha acabado de começar uma graduação, eu sabia que levar a gestação adiante ia impossibilitar que eu continuasse na faculdade, assim como eu tive de interromper o curso técnico que fazia quando engravidei da minha filha, eu não queria passar por tudo aquilo de novo, sem apoio financeiro e emocional”, relata. Para ela, quem deve determinar seguir ou não com uma gestação é a própria mulher.
Os deputados discordam. O senador Eduardo Amorim, no relatório que fez sobre a PEC 29, até admite que “não há consenso entre os especialistas acerca do momento que demarcaria o início da vida humana”. Ele cita que as quatro principais hipóteses hoje seriam: 1) que a vida humana teria início na fecundação, 2) que a vida humana teria início com a fixação do zigoto na parede do útero, 3) que a vida da humana teria início a partir da formação do sistema nervoso central e do princípio da atividade cerebral, o que ocorre entre a quarta e a oitava semana de gestação ou ainda que 4) a vida humana teria início com o nascimento.
Porém, o senador conclui que, não havendo consenso, cabe ao Poder Legislativo escolher o parâmetro. A escolha de Amorim foi considerar que a adoção do marco legal da vida desde a concepção seria um avanço no respeito da dignidade da pessoa humana. Eduardo Amorim está filiado ao PSDB desde fevereiro deste ano, mas ele foi eleito pelo PSC, partido dos deputados Marco Feliciano e Jair Bolsonaro, presidido nacionalmente por Pastor Everaldo.
A leitura do movimento em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é que essa alteração vai instituir uma situação inédita no país e inviabilizar a legislação existente hoje que permite o aborto em caso de risco de vida para a mulher, gestação em decorrência de estupro e em caso de anencefalia do feto.
Masra de Abreu menciona que em países com Nicarágua e Chile, que adotam uma legislação deste tipo, muitas mulheres que sofrem abortos espontâneos deixam de procurar o sistema de saúde por medo de acabarem processadas ou presas. “Acho que temos uma disputa de sentido, que não é só o valor religioso ou progressista, mas que é uma disputa pelo que isso vai significar na vida real das mulheres”, argumenta.
O presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família descarta a possibilidade da legislação que permite o aborto ser derrubada por esta nova redação da Constituição. “São situações específicas, o caso do estupro é uma decisão pessoal da mãe em virtude da violência e o caso de risco de morte para a mãe também é uma decisão da família, até em situações de cirurgia de alto risco a família assina um termo”, afirma Alan Rick. “O que vamos fazer é dar uma proteção ao bebê”.
*Foi usado um nome fictício para proteger a entrevistada de retaliações legais.
Samata Dias