Tem sido um tema recorrente, entre militantes de direitos humanos das esquerdas, o debate sobre ser a favor ou contra a criminalização da discriminação e dos discursos de ódio contra pessoas LGBTI – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos. Em geral, seguindo a crença geral da sociedade na necessidade do uso do Direito Penal para coibir determinadas condutas, tidas como intoleráveis ao convívio social, a população LGBTI parece mostrar-se favorável à criminalização da opressão que lhe acomete, da mesma forma que outras opressões já são criminalizadas. Mas há vozes dissonantes nas esquerdas, que, dada a nefasta seletividade do sistema penal e sua ineficácia a uma generalidade de casos, opõem-se ao que chamam de “aumento do Estado Penal”, para nele abarcar a lesbofobia, a gayfobia, a bifobia e a transfobia, aqui designadas pelo termo homotransfobia [1].
(Justificando, 10/07/2017 – acesse no site de origem)
Já coescrevi [2] e escrevi [3] artigos sobre este tema. Um recente debate fez-me, uma vez mais, sintetizar os argumentos em favor da criminalização, que passo agora a desenvolver.
Inicialmente, cabe estabelecer o que significa Direito Penal Mínimo. O minimalismo penal não é algo quantitativo, dependente de um baixo número de leis penais, mas qualitativo. Ou seja, a teoria penal minimalista prega que uma conduta só pode ser criminalizada se houver um bem jurídico-penal, ou seja, um valor social cuja proteção é indispensável para a vida em sociedade, bem como se os demais ramos do Direito não forem suficientes para proteger tal bem (por intermédio de multas administrativas, indenizações civis etc). Nesse sentido, considerando que a tolerância é algo basilar à vida em sociedade [4], constituindo a conduta mínima que as pessoas devem ter para com terceiros cujas condutas desaprovem, mas não lhes prejudiquem [5], então, à toda evidência, ela se enquadra como bem jurídico-penal – e a intolerância às orientações sexuais não-heteroafetivas e às identidades de gênero transgêneras assolam cotidianamente a população LGBTI. Ao passo que mesmo lugares que punem administrativamente a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, como o Estado de São Paulo (Lei Estadual 10.948/01), não têm conseguido coibir a homotransfobia, donde o outro requisito, do Direito Penal como última alternativa (ultima ratio), também resta atendido.
Entenda-se bem: não defendo o Direito Penal como panaceia a resolver, magicamente, todos os males. Estou apenas exigindo, de defensores da tese do “Estado Penal Mínimo”, coerência com a teoria do Direito Penal Mínimo, que prega que, atendidos os requisitos citados, a criminalização é necessária (e, para pelo menos parte da doutrina jurídico-penal, criminalização obrigatória – tese dos mandados de criminalização implícitos, que não cabe, aqui, desenvolver).
Passemos, assim, a debater com os argumentos contrários à criminalização da discriminação e dos discursos de ódio a pessoas LGBTI.
Em geral, defende-se que, ao invés de se focar na repressão penal do Estado, deveria haver atuação em demandas de educação e conscientização social para o respeito às distintas orientações sexuais e identidades de gênero. Como se vê, fala-se como se uma coisa fosse incompatível com a outra, algo profundamente equivocado e que não constitui, de forma alguma, a posição do Movimento LGBT [6] brasileiro. Inclusive, recentemente, a ABGLT liderou estudo, por intermédio de seu Presidente, Carlos Magno, e seu Secretário de Educação, Toni Reis, precisamente para averiguar a situação de discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero nas escolas – a saber, a “Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil. As Experiências de Adolescentes e Jovens Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”[7]. Isso no contexto, dos últimos anos, desde o final de 2014, de engajamento do Movimento LGBT brasileiro na luta pela manutenção da previsão específica de repressão às discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual, nos planos de educação: embora derrotado nas instâncias políticas em geral, pela vitoriosa articulação de fundamentalistas religiosos e reacionários morais em geral nestas esferas, houve efetiva atuação do Movimento LGBT (“hegemônico”) por tal pauta. Que sempre constituiu sua preocupação, como o exemplo do Projeto “Escola Sem Homofobia”, nefastamente vetado pela então Presidenta Dilma Rousseff, serve de outro exemplo. Em minha atuação pessoal, tenho ações no Supremo Tribunal Federal pleiteando tanto o reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar de forma específica a homotransfobia, bem como sua classificação como crime de racismo, em sua acepção de racismo social[8] (MI 4733, pela ABGLT, e ADO 26, pelo PPS), quanto o reconhecimento do dever das escolas, públicas e privadas, em coibir as discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual (ADI 5668, pelo PSOL).
Logo, absolutamente inadequado falar-se como se a defesa da pauta da criminalização fosse “incompatível” com a defesa de pautas de educação. Há considerável tempo defendo a concomitância de ambas as lutas: pela criminalização, como medida de curto prazo, para fornecer imediatamente mecanismos de proteção à população LGBTI brasileira[9], e a educação, como medida de longo prazo, para transformação social. E essa tem sido a postura do Movimento LGBT brasileiro.
Outro argumento comum, tanto à esquerda quanto à direita, contra a criminalização específica, é o de que o Código Penal atual seria suficiente para proteger pessoas LGBTI. Ocorre que o argumento ignora que a conduta de discriminar alguém, impedindo-lhe de fazer algo que se permite ou tolera que outras pessoas (heterocisgêneras, no caso), bem como os discursos de ódionão são criminalizados pelo Código Penal. Somente o são pela Lei Antirracismo (Lei 7.716/89), pelo crime de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça, cor, etnia, procedência nacional ou religião(art. 20). Logo, não entendida a homotransfobia como espécie de crime de racismo (como peço ao STF que seja, no MI 4733 e na ADO 26), algo que notoriamente ainda não é o entendimento predominante, então não se pode dizer que o Código Penal protege suficientemente a população LGBTI, já que tais condutas (discriminação e discursos de ódio) são as que mais as assolam/oprimem. Não passa, portanto, de senso comum atécnico considerar o Código Penal suficiente para tanto. Sem falar que crimes de ódio são mais graves que crimes não praticados em razão de tal ódio, justamente por praticados por desumanização (ou mesmo desprezo) a determinada pessoa, por ela ser integrante de minoria ou grupo vulnerável, razão pela qual merecem uma punição específica, mais rigorosa, dado dito caráter opressor a determinado grupo social, inexistente nos crimes em geral.
Outro argumento comum aos críticos, à esquerda, da criminalização, é o de que a cadeia não recupera ninguém e que, por isso, crimes sem violência física não deveriam ser punidos dessa forma. Sem discordar que as cadeias mais parecem masmorras medievais, inadequadas à finalidade de ressocialização, inerente às penas, o argumento ignora algo central do Direito Brasileiro. Crimes cuja pena máxima de dois anos são passíveis de transação penal (um acordo), ofertado pelo Ministério Público ao acusado (homologado por sentença), o qual, se aceitar, terá uma pena alternativa (pagamento de cestas básicas, prestação de serviços comunitários etc), independente do que pense a vítima acerca do tema. Trata-se dos crimes de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95), potencial este aferido pelo tamanho da pena atribuído pelo legislador, sendo que a única ressalva é que a pessoa não poderá disto se beneficiar, novamente, pelo prazo de cinco anos. Ao passo que crimes com pena máxima possível maior que essa, mas cuja sentença condenatória aplique pena de até quatro anos de prisão, têm tal pena privativa de liberdade substituída, pelo juiz, por penas alternativas – o que só não ocorrerá se o juiz fundamentar adequadamente a absoluta necessidade da prisão, demonstrando que “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa [não[10]] substituição seja suficiente” (art. 44, §3º, do Código Penal). Sendo que, a possibilidade hipotética de um crime ser considerado grave o bastante para dar cadeia, mesmo com penas que admitam penas alternativas, aumenta o efeito de prevenção geral de condutas, alicerce do Direito Penal (pessoas não praticarem a conduta pelo temor de aplicação da pena). Então, descabido tirar isso apenas dos crimes praticados contra pessoas LGBTI, como alguns parecem pretender, nos casos em que não haja violência física.
Então, esse argumento ignora o Direito vigente, que já possibilita penas alternativas no Brasil. Bem como fecha aos olhos que o critério das leis brasileiras para as penas alternativas é o tamanho da pena, não o tipo de crime ou, pior, a vítima do crime. Ora, por que ser contra que a punição a ofensas e discriminações contra pessoas LGBTI se enquadrem nesse critério se esse é o parâmetro utilizado para os crimes em geral?
Por que só quando a população LGBTI está envolvida é que se quer reinventar o universo penal, ao invés de criminalizar sua opressão da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país?
Aqui chegamos ao argumento que sempre me foi central e que ajudei a popularizar no Movimento LGBT brasileiro: a não-hierarquização de opressões [11]. Ora, se as opressões a minorias e grupos vulneráveis em geral são punidas criminalmente pelo Estado, por qual motivo não se poderia punir a opressão à população LGBTI da mesma forma? Lembre-se que a atual Lei Antirracismo pune as discriminações por raça, cor, etnia, procedência nacional e religião [12]. A violência doméstica [13] e a discriminação a pessoas com HIV [14] também são alvo de leis penais específicas, criminalizadoras de tais condutas. Mesmo condutas que já constituem crimes são objeto de recrudescimento penal, aumentando sua punição, como no caso do feminicídio [15].
Como se vê [16], sempre que é conclamado a coibir opressões em geral, o Estado dá uma resposta penal, criminalizando-as – ou seja, a resposta estatal para as opressões sempre vem por intermédio do Direito Penal. Podemos gostar ou desgostar disso, mas esse é o fato objetivo, incontestável, ao longo da história e na atualidade. Nesse sentido, não-criminalizar a discriminação e os discursos de ódio à população LGBTI da mesma forma que se criminaliza outras opressões passa a evidente mensagem de que a opressão homotransfóbica seria “menos grave” do que aquelas outras. Evidente que não penso que essa é a vontade de quem se opõe à criminalização aqui defendida, mas a não-criminalização passa essa mensagem à sociedade em geral, donde suas boas intenções acabam tendo esse nefasto efeito reverso.
Ao passo que, cabe esclarecer, o argumento da não-hierarquização de opressões vale tanto para quem não quer criminalizar a discriminação e os discursos de ódio a pessoas LGBTI quanto a quem deseja criminalizá-las de forma distinta daquela que se criminaliza tudo nesse país – e, como visto, não é necessário criar um modo de criminalização específico, um “Direito Penal Paralelo”, apenas para os crimes cometidos contra pessoas LGBTI, para possibilitar o uso de penas alternativas, já que o critério da lei brasileira é o tamanho da pena, independente do tipo de crime ou de vítima. Se a preocupação é possibilitar-se que se apliquem penas alternativas destinadas à educação para a diversidade sexual e de gênero (e não “quaisquer” penas alternativas), então que se faça isso na Lei de Execuções Penais, por exemplo, estabelecendo que, quando forem aplicadas penas alternativas a crimes de discriminação homotransfóbica, então que se apliquem as penas alternativas “x”, “y” ou “z” (etc).
Mas sem obrigar-se a aplicação de penas não-privativas de liberdade somentea crimes cometidos contra pessoas LGBTI ou mesmo a minorias e grupos vulneráveis em geral, fora dos citados critérios do art. 44, §3º, do Código Penal ou outros que os venham a substituir. Descabido, por isso, propor-se a alteração nesse sentido apenas da Lei Antirracismo (nossa Lei Penal Geral Antidiscriminatória, como bem diz Roger Raupp Rios) e deixar-se o restante das criminalizações da forma punitivista atual, porque, nesse caso, a opressão ao patrimônio valerá mais que as opressões propriamente ditas. Crimes de ódio e opressões em geral precisam ser criminalizadas da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país (embora de forma mais rigorosa, cf. supra), sob pena de incoerência sistêmica geradora de hierarquização de opressões ou, no mínimo, que piore a situação, largamente denunciada, de proteção penal ao patrimônio valer mais que a proteção penal a bens jurídicos mais relevantes, como a tolerância a pessoas diferentes que não prejudiquem ninguém com suas condutas, neste caso.
Sempre faço um paralelo com posição externada pelo Movimento LGBT argentino, na luta pelo casamento civil igualitário. Lá, simplificando, setores tradicionais do movimento não queriam o “casamento civil”, por considerá-lo uma “instituição conservadora”, “heterossexista”. Defendiam uma “união civil”, específica para homossexuais (algo que considero intolerável[17]). Ou então que se reformulasse toda a legislação do casamento civil, para torná-lo “progressista”, também para simplificar dessa forma. Felizmente, ali prevaleceu o argumento que pregava “primeiro a igualdade”. Ou seja, primeiro inclua-se casais homoafetivos na lei do casamento civil para, somente em futuro momento, discutir-se alterações no regime jurídico do casamento civil.
No mesmo sentido, defendo que, primeiro criminalize-se a discriminação e os discursos de ódio contra pessoas LGBTI da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país (incluindo-se as expressões orientação sexual e identidade de gênero na Lei 7.716/89) para, depois, propormos a mudança de todo o sistema penal brasileiro, para adotar perspectivas de Justiça Restaurativa e, enfim, minimalistas em geral, substituindo a “lógica da cadeia” por uma lógica efetivamente ressocializante e que, efetivamente, proteja a sociedade – o que a lógica punitivista atual, realmente, não faz, não obstante já possibilite penas alternativas, pelo critério do tamanho da pena. Mas, da mesma forma que se falava, na Argentina, que não seria justo nem adequado discutir-se a reforma da legislação sobre o casamento civil em geral justamente quando casais homoafetivos pleiteavam o direito de acesso a tal regime jurídico, é igualmente inadequado e injusto propor-se a mudança da lógica da legislação penal precisamente quando se debate a necessidade de proteção da população LGBTI por intermédio do Direito Penal.
Esclareço que defensores de tal argumento de “primeiro a igualdade”, para o casamento, já me manifestaram não aceitá-lo para a criminalização. A uma, por entenderem que não haveria um “direito” a obter a criminalização. A outra, pelo sistema penal acabar por violar direitos humanos de presas e presos, dadas as verdadeiras masmorras que chamamos de “prisões”. Ocorre que o primeiro argumento improcede e o segundo não justifica um tratamento distinto para a opressão homotransfóbica relativamente às opressões em geral. Sobre o direito à criminalização, embora isso suponha algum conhecimento aprofundado em Direito Constitucional, as pessoas têm, efetivamente, um direito à proteção eficiente do Estado, na medida em que é basilar, na doutrina constitucional, o fenômeno da inconstitucionalidade por proteção insuficiente.
Ou seja, se o Estado não protege de maneira eficiente sua população, essa sua omissão é considerada inconstitucional. Se isso é assim, então é evidente que as pessoas têm, efetivamente, o direito de terem as opressões que as assolam criminalizadas, se isso for necessário para sua proteção eficiente – como prega a própria Doutrina do Direito Penal Mínimo, acima explicada. O direito à segurança, textualmente garantido pela Constituição Federal (art. 5º, caput), isto ratifica: a criminalização da homotransfobia como forma de proteção eficiente dos direitos fundamentais da população LGBTI [18].
Por outro lado, o argumento da ineficácia do sistema penal e dele violar direitos humanos de presas e presos contraria a própria lógica do argumento “primeiro a igualdade”. Ora, não contesto, e poucas pessoas de esquerda contestarão, a necessidade de se reestruturar o sistema penal brasileiro, para uma linha restaurativa, cujo foco principal não seja o punitivismo, mas a efetiva ressocialização do criminoso e reparação do dano causado à vítima. Quem propuser uma reforma de todo o sistema penal nesse sentido terá todo o meu apoio. Ocorre que essa é uma discussão que tem que ser feita para o sistema penal como um todo.
Não é justo que apenas a opressão contra pessoas LGBTI seja alvo de uma forma alternativa de punição, criando-se um “Direito Penal Paralelo”, somente a elas, como alguns parecem propor – “parecem” porque nunca apresentaram, até o momento [19], propostas concretas, restringindo-se a críticas genéricas ao chamado “aumento do Estado Penal”. As quais parecem improcedentes neste caso, já que o que o Movimento LGBT brasileiro propõe é punir criminalmente a opressão contra pessoas LGBTI da mesma forma que já se punem criminalmente outras opressões, e não criminalizar condutas que já não são criminalizadas – e, se criminaliza-se algo para proteger determinadas pessoas, o princípio da igualdade demanda que altere-se a lei para que tal criminalização abarque situações equivalentes [20]. A questão é o que chamo de direito à igual proteção penal: se a opressão contra outras minorias e grupos vulneráveis é punida pelo Direito Penal, viola o princípio da igualdade não punir criminalmente a opressão contra pessoas LGBTI, dada a arbitrariedade de tal diferenciação de tratamentos jurídicos.
Argumentam opositores da criminalização, ainda, que a Lei Antirracismo não acabou com o racismo negrofóbico e que o Estado Penal persegue a população negra e pobre, donde isso demandaria substituir a lógica criminalizadora por alguma outra. Contudo, jamais se poderia considerar a verdadeira e nefasta criminalização da população negra, especialmente das classes mais baixas, perpetrada, na prática, pelo Estado, seria algo de responsabilidade do “aumento do Estado Penal” gerado pela Lei Antirracismo, já que ela não se dá por intermédio dos crimes de racismo (e de “injúria racial”), mas por tipos penais outros, em aplicação racista e classista da lei penal. Ademais, embora e negrofobia ainda exista e seja forte, o (primeiro) argumento fecha os olhos ao fato de que a Lei Antirracismo, de 1989, calou os discursos de ódio racistas, diminuindo-os consideravelmente. Atualmente, regra geral, pelo menos em público, pessoas racistas tentam disfarçar seu racismo, em virtude da criminalização. Até 1989, pseudo “piadas” racistas eram generalizadas e discursos de ódio racistas ditos com muito orgulho e segurança por seus prolatores. Com a criminalização, sabedores de que tal conduta poderia gerar cadeia, essas manifestações públicas de racismo diminuíram [21].
Negar esse inconteste efeito benéfico da Lei Antirracismo implica fechar, deliberadamente, os olhos à realidade, já que, de 1989 em diante, não tivemos uma maior conscientização social contra o racismo. A única mudança foi a repressão penal ao mesmo, de sorte a ser indefensável dizer que outros fatores sociais teriam gerado essa diminuição dos nefastamente orgulhosos discursos de ódio negrofóbicos em público (não obstante, reitere-se, não se esteja negando que o racismo negrofóbico ainda exista e ainda haja pessoas que expressem sua odiosa negrofobia). Então, a criminalização da discriminação e dos discursos de ódio contra pessoas LGBTI certamente teria esse mesmo efeito benéfico, de calar discursos de ódio lesbofóbicos, gayfóbicos, bifóbicos e transfóbicos país afora – e isso não pode, jamais, ser tido como sem importância.
Vivemos verdadeira banalidade do mal homotransfóbico, precisamente no sentido de Hannah Arendt, de pessoas consideradas “normais”, “de bem”, e não “monstros”, considerarem ter um pseudo “direito” de ofender, discriminar e até mesmo agredir e matar pessoas LGBTI por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero dissonantes daquelas da maioria. O Direito Penal terá, aqui, importante papel educativo: leis penais não podem ser puramente simbólicas, mas toda lei tem um simbolismo a si imanente e é notório que a ausência de criminalização específica faz com que muitos(as) considerem ofensas e discriminações homotransfóbicas estariam protegidas por sua “liberdade de expressão”. Não estão, já que é contraditório com qualquer direito de liberdade, que supõe condutas que não prejudiquem terceiros, a pretensão de ofender (injuriar) indivíduos e coletividades por menosprezos diversos à sua honra e dignidade [22]. Assim, uma lei penal que isso deixe expresso, quanto aos crimes contra a honra, certamente teria importante função social na luta contra a homofobia e a transfobia.
Em suma, defendo coerência da punição à discriminação e aos discursos de ódio contra pessoas LGBTI com o sistema penal como um todo. Enquanto este não é mudado, a criminalização da opressão a pessoas LGBTI deve ser feita da mesma forma que se criminaliza todas as demais opressões nesse país. Sob pena de nefasta hierarquização de opressões, que deve ser tida como intolerável em um Estado Democrático de Direito que busque o bem-estar social de todas e todos. Ao passo que, dado que a resposta do Estado a opressões que ele considera intoleráveis sempre se deu e ainda se dá pela via penal, então, há um direito à igual proteção penal de pessoas LGBTI, de terem a opressão que as assola punida também pelo Direito Penal, dado o dever estatal de proteção eficiente de toda a sua população – logo, também a minorias e grupos vulneráveis. É preciso, então, superar esse senso comum aparentemente abolicionista, mal disfarçado de minimalista, no tema da criminalização das opressões a minorias e grupos vulneráveis em geral.
Adotar uma perspectiva punitivista ou efetivamente ressocializadora/restaurativa é uma decisão fundamental da sociedade como um todo, que não pode ser jogada nas costas da população LGBTI e de quaisquer outros grupos vulneráveis vítimas de histórica opressão social. No sentido de que, ou se muda a forma de punição criminal para os crimes em geral, ou se criminaliza as opressões a minorias e grupos vulneráveis, como a homotransfóbica, da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país. Descabe ser paternalista, para impor uma forma alternativa de criminalização, apenas contra os grupos que mais necessitam da proteção penal do Estado: não podemos servir de tubos de ensaio. Ou a sociedade como um todo se compromete a mudar a forma como o Direito Penal atua, para adotar um efetivo minimalismo penal (ou mesmo o abolicionismo, desde que apresentada uma forma pragmaticamente eficiente, e não meramente utópica, que substitua o Direito Penal), ou então, deverá ser aceita a criminalização de opressões contra minorias e grupos vulneráveis, como a população LGBTI, da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país. É uma questão de isonomia, razoabilidade e bom-senso não-hierarquizantes de opressões.
Paulo Iotti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.
[1] Peço desculpas e máxima licença ao Movimento Bissexual, para que, enquanto não haja uma consolidação, no Movimento LGBT, sobre um termo inclusivo de todas as identidades, afirmar que o termo homofobia abarca, por interpretação extensiva, a bifobia, entendendo a homofobiacomo abarcando a discriminação por orientação sexual e a transfobia englobando a discriminação por identidade de gênero – e o termo homotransfobia, ambas.
[2] BAHIA, Alexandre Melo Franco. GERALD, Marcelo. IOTTI, Paulo. COLAÇO, Rita. VIANA, Thiago. O PLC 122 Aumentaria o Estado Penal? Site PLC 122, 28 de Julho de 2013. Disponível em:http://www.plc122.com.br/plc122-aumentaria-estado-penal-minimo/#axzz4lvXDqSlT (último acesso em 05.07.2017). Note-se que o PLC 122/06 é um projeto que não existe mais, já que foi definitivamente arquivado, por decurso de prazo máximo de tramitação – e cujo substitutivo, de 2009, basicamente se limitava a acrescentar “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos crimes já existentes na atual Lei 7.716/89.
[3] Desenvolvendo mais vagarosamente temas aqui trabalhados, entre outros: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Fundamentos em prol da Criminalização da Homofobia e da Transfobia. Resposta às Críticas. JOTA, 07 de Julho de 2016. Disponível em:<https://jota.info/artigos/fundamentos-em-prol-da-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia-07072016> (último acesso em 05.07.2017). Também disponível no meu blog, em: <https://pauloriv71.wordpress.com/2017/07/05/fundamentos-em-prol-da-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia-resposta-aos-criticos/>.
[4] Até por menos ampla que o efetivo respeito.
[5] Conceito liberal de liberdade: fazer-se o que se quiser, desde que não se prejudiquem terceiros.
[6] Uso a sigla “LGBTI”, pela questão das pessoas intersexo também ser tema de identidade de gênero, por não se identificarem com o gênero que lhes foi imposto, ao nascerem, por intermédio da(s) cirurgia(s) mutiladora(s) que lhe submeteram. Mas o Movimento LGBT brasileiro ainda não aceitou incorporar o “I” na sigla. Por isso menciono apenas “LGBT”, quando me refiro ao movimento, mas falo em “LGBTI”, quando me refiro à população.
[7] Disponível em: <http://www.abglt.org.br/docs/IAE-Brasil.pdf> (último acesso em 21.03.2017).
[8] Cf. STF, HC 82.424/RS.
[9] Para um belo artigo de Renan Quinalha acerca do tema, que muito bem dialoga com as pautas críticas e defende a criminalização da homotransfobia, vide: <http://justificando.cartacapital.com.br/2015/07/08/em-defesa-da-criminalizacao-da-homotransfobia/> (último acesso em 05.07.2017).
[10] O dispositivo legal fala que a substituição, da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos se dará se tais circunstâncias demonstrarem que a substituição é necessária. Neste texto, afirmei o mesmo, mas em sentido contrário, daí o colchete.
[11] Expressão que ouvi, pela primeira vez, do militante Beto de Jesus.
[12] Lei 7.716/1989.
[13] Lei 11.340/2006.
[14] Lei 12.984/2014.
[15] Lei 13.104/2015, que acrescentou qualificadoras ao crime de homicídio (art. 121 do Código Penal), quando praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, considerando-se que isso acontece “quando o crime envolve violência doméstica e familiar” e “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
[16] Estas duas últimas leis citadas são dos anos de 2014 e 2015 – logo, muito recentes.
[17] Intolerável porque institucionaliza o nefasto regime racista do “separados, mas iguais”, na seara do casamento civil. Mais adequado à igual dignidade de casais homoafetivos relativamente aos heteroafetivos é a campanha do casamento civil igualitário, no Brasil liderada pelo Deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ): “mesmos direitos com os mesmos nomes”. Como se vê no corpo do texto, defendo essa mesma lógica para a criminalização de condutas, algo como “criminalização da mesma forma que se criminaliza tudo nesse país”.
[18] Nesse sentido, com base na imposição constitucional de repressão a discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI): GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Direito Penal: a criminalização da homofobia como forma de proteção de direitos fundamentais. In: Justificando, 03 de julho de 2015. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2015/07/03/direito-penal-a-criminalizacao-da-homofobia-como-forma-de-protecao-de-direitos-fundamentais/> (último acesso em 05.07.2017). Artigo este que me honra, com citação das ações que movi no STF sobre o tema (MI 4733 e ADO 26), bem como artigo que escrevi, defendendo os pareceres da PGR, favoráveis a elas.
[19] Mesmo após anos de manifestações suas e eventuais debates sobre o tema…
[20] Fica claro que não defendo analogia in malam partem, ou seja, criminalização, em julgamento de caso concreto, por juízo de semelhança, fora dos casos do texto da lei, já que está expresso no texto que digo que o princípio da igualdade demanda alteração da legislação para punir situações semelhantes. Sendo a isonomia uma imposição constitucional relativa (não gera obrigação de legislar por si, mas a gera quando determinadas situações já foram normatizadas e há necessidade de tal normatização a outras, àquelas equivalentes), então essa situação gera uma omissão inconstitucional, quanto à não-proteção de situações equivalentes à já protegida pela lei. Mas esse tema não pode ser desenvolvido nos limites deste artigo.
[21] Isso não obstante a jurisprudência tenha cometido verdadeira tentativa de homicídio da Lei Antirracismo, pela absurda diferença, criada sem respaldo legal, entre racismo e injúria racial, para afastar desta o crime de racismo – embora a injúria racial esteja positivada atualmente na legislação, isso foi feito só em 1997, por verdadeira política de redução de danos, do legislador, já que dita jurisprudência ora considerava a “injúria racial” como injúria simples (pena ínfima) ou, pior, fato atípico. Para desenvolvimentos sobre este tema, vide: SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Decisão do STJ que considera injúria racial imprescritível é correta. In: Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2016. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2016-jan-24/decisao-stj-considera-injuria-racial-imprescritivel-correta?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook> (último acesso em 05.07.2017).
[22] Obviamente, não incluído no conceito de “injúria” um legítimo direito de crítica. A diferença não tem como ser aferida abstratamente, mas somente no caso concreto, de acordo com as palavras concretamente utilizadas e o contexto respectivo. De qualquer forma, por exemplo, há pessoas que acham que a liberdade de expressão lhes permitiria vincular homossexualidade a pedofilia, numa verdadeira injúria coletiva (expressão de minha autoria, para designar injúria a uma coletividade – pois o crime de “injúria” supõe ofensa a uma pessoa determinada). Daí que uma qualificadora específica, sobre injúria motivada na orientação sexual e identidade de gênero, teria o citado papel pedagógico, da ilicitude de uma tal injúria (o que muitas e muitos, reitere-se, não percebem atualmente).