Forma ‘invisível’ de violência doméstica, controle das finanças impossibilita que muitas mulheres deixem relacionamentos abusivos
(Nexo, 11/07/2017 – acesse no site de origem)
A violência doméstica que afeta mulheres apresenta, na maioria das vezes, um ciclo que envolve diferentes tipos de agressões, além das físicas.
É provável que mulheres que são ou foram agredidas fisicamente já tenham sofrido violência psicológica (sob a forma de ameaças, xingamentos, controle do comportamento, das decisões e muitas outras práticas), patrimonial (danos a objetos, bens e documentos), sexual ou financeira. Por serem menos visíveis, esses outros tipos de abuso são ainda mais difíceis de serem combatidos.
Um dos componentes possíveis de uma situação de violência, o abuso financeiro usa o dinheiro como forma de controle. Impedir que a vítima veja o extrato de uma conta conjunta ou acesse seus recursos, controlar suas compras, proibir que a mulher trabalhe ou provocar sua demissão são algumas das práticas que configuram esse tipo de abuso, segundo a definição do projeto “Livre de Abuso”. Criado por um grupo de mulheres, ele consiste em uma rede de informação sobre a dinâmica do abuso nos relacionamentos.
Para além de um tipo de violência em si, essa categoria de abuso é, também, um dos principais fatores que impossibilitam a saída da mulher de uma situação em que sofre violência doméstica.
Conscientização
No final de junho, a tenista americana Serena Williams aderiu a uma iniciativa da fundação americana “The Allstate Foundation”, cujo objetivo é a conscientização sobre o abuso financeiro como parte do quadro de violência doméstica.
A campanha “Purple Purse” (Bolsa roxa, em português), da qual Williams é a nova embaixadora, foi lançada pela fundação da companhia de seguros americana em 2005 e declara ter contribuído para que cerca de um milhão de mulheres tivessem condições de sair de relacionamentos abusivos, provendo educação financeira e treinamento profissional para as vítimas.
Segundo a tenista, o apoio ao projeto vem da percepção de que poucas pessoas sabem do que esse tipo de abuso se trata. “É uma forma invisível de violência doméstica, mas também devastadora, que ata as vítimas aos relacionamentos nocivos”, disse Williams ao site Mic.
Ela ainda chama atenção para as muitas formas diferentes que o abuso financeiro pode tomar, formas que muitas vezes são sutis.
O nome da campanha tem a ver com um vídeo feito pela “Purple Purse” em que passageiros de um carro encontram uma bolsa roxa no chão, supostamente pertencente à passageira anterior. O celular dentro da bolsa vibra com notificações de mensagens abusivas como “onde você vai morar se se separar de mim?” e “cancelei seu cartão, você não pode pagar um advogado se não tiver dinheiro.”. Uma câmera dentro do carro filma a reação de cada um.
A mulher em questão então liga para o próprio aparelho, com o objetivo de recuperar seus pertences. Quando os desconhecidos se encontram, o “experimento” capta se as pessoas intervêm ou não para oferecer ajuda à vítima fictícia de violência. Todos os que aparecem na versão final do vídeo perguntaram, com níveis distintos de clareza e assertividade, se está tudo bem com a mulher.
No Brasil: Lei Maria da Penha protege mulheres vítimas de abuso financeiro
A Lei Maria da Penha reconhece o abuso financeiro como uma forma de violência contra a mulher.
Mulheres que tenham o acesso a seus recursos bloqueado em decorrência de abuso financeiro, sejam esses recursos só seus ou compartilhados, podem recorrer à Justiça. O primeiro passo é procurar a Defensoria Pública de seu estado para obter assistência jurídica, segundo Yasmin Pestana, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher na Defensoria Pública de São Paulo.
A lei prevê, além disso, em seu 24o artigo, medidas protetivas (ordens judiciais com o objetivo de proteger a mulher, sob pena de prisão se forem descumpridas pelo agressor) específicas para combater a violência patrimonial e o abuso financeiro.
Elas garantem à mulher que sofre violência patrimonial a indenização, restituição de bens e impedem a venda de bens compartilhados. Segundo disse Pestana em entrevista ao Nexo, essa é uma ameaça comum dos parceiros ou ex-parceiros: a destruição ou venda dos pertences da mulher, caso ela saia de casa, sem deixar rastro para a recuperação desses bens.
Esse tipo de medida é ainda pouco posta em prática, segundo a defensora. Isso se deve, em parte, à falta de visibilidade desse tipo de agressão.
A violência patrimonial e o abuso financeiro, assim como a violência doméstica de forma geral, afetam tanto mulheres pobres quanto de classe média e alta. A lei deve se adequar a essas realidades distintas na emissão das medidas protetivas.
Juliana Domingos de Lima