Menos de 24h após ejacular em uma passageira de ônibus em São Paulo, Diego Ferreira Novais, 27, foi solto pela Justiça, que classificou o ato como contravenção. A pena prevista? Uma multa que pode variar de duzentos mil réis a dois contos de réis.
(UOL, 31/08/2017 – acesse no site de origem)
Você não leu errado: é isso que determina o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, em que o ato foi enquadrado. Publicada em 3 de outubro de 1941 por Getúlio Vargas, quando o Rio de Janeiro ainda era capital federal, a lei aborda, neste artigo, “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.
Fernanda Castro Fernandes, doutora em Direito e especialista em violência contra mulher, explica que, pelo Código Penal, o ato não pode mesmo ser considerado estupro. Ela classifica o abuso como violência sexual, embora isso não esteja tipificado como crime.
“É chocante, é machista e agride a mulher moralmente e psicologicamente, mas não tem uma resposta na legislação que dê conta disso”, declara Fernanda.
A decisão foi tomada pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto, que determinou a liberação do acusado. O magistrado entendeu que “não houve constrangimento à vítima” e disse que Diego, que já tem outras acusações de tentativas de estupro, necessita de tratamento psicológico e psiquiátrico.
Além do artigo em que o assédio no ônibus foi enquadrado, a Lei das Contravenções Penais aponta infrações no mínimo curiosas, penalizando, por exemplo, quem não trabalha (art. 59: Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho) e barulhentos em geral (art. 42: Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda).
“Fere a liberdade de ir e vir das mulheres”
Para a doutora em Direito, é preciso que se pense na reformulação das leis, considerando a sociedade de hoje e seus problemas.
“Não é uma violência sexual igual ao estupro, mas também constrange, causa danos psicológicos, traumas. Fere a liberdade de ir e vir das mulheres, porque ela tem medo de entrar num ônibus e sofrer esse tipo de assédio. A gente tem um buraco aí na legislação”.
Fernanda explica ainda que a vítima pode processar o acusado na esfera civil e pedir uma indenização. “Claro que não recupera o sofrimento que ela teve, o constrangimento ou o choque pelo qual passou, mas essa seria uma saída à via penal”, afirma.
Ameaças no transporte público e privado
O número de casos de assédio e abuso no transporte é tão recorrente que Prefeitura de São Paulo e Governo do Estado se uniram para realizar uma campanha e tentar coibir os ataques. Batizada de “Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes”, engloba linhas de ônibus, trens e metrôs e foi lançada na terça, mesmo dia em que o caso da ejaculação aconteceu.
Nesta quarta-feira (30), um novo episódio de assédio em ônibus aconteceu, também na Avenida Paulista: um homem agarrou os seios de uma passageira. Assim como o caso do dia anterior, o abusador foi preso em flagrante. No entanto, nem chegou a passar por audiência em fórum: foi liberado ainda na delegacia.
Na segunda-feira (29), o relato de estupro da escritora Clara Averbuck, cometido no fim de semana por um motorista da Uber, já havia chocado os internautas.
Foram três casos de grande repercussão, divulgados em três dias seguidos, na maior cidade do país. Mas nem sempre o assédio vira notícia, enfatiza Caroline Freitas, antropóloga e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
“E quando vira notícia, o que acontece? O metrô cria, por exemplo, o vagão rosa. Só que é uma coisa absolutamente perversa. E todas as mulheres que não conseguirem entrar no tal vagão, estarão como? Vão ouvir ‘se quisesse se proteger, estava no vagão rosa'”, acredita Caroline.
É uma insanidade tal que eles não dizem para os caras não violentarem as mulheres, mas dizem: ‘mulher, proteja-se, o problema é você'”, afirma a antropóloga
“Você vai estar exposta a isso”
Caroline explica que abuso e violência sexual não tem relação com desejo sexual, mas sim com demonstrar poder sobre o corpo da mulher.
“A questão não é erótica. É o poder de fazer e desfazer do corpo daquela pessoa, que é tratado como algo inerte. Não tem diferença se você tem 80 anos, se você usa burca, se você é ativista e tem consciência do machismo estrutural. Não interessa, você vai estar exposta a isso, porque a sociedade é machista e misógina”, explica.
Os abusadores dos ônibus já estarem em liberdade passa também uma mensagem ao restante da sociedade, diz Caroline. “Você pode se masturbar em cima de uma mulher dentro de um transporte coletivo que, se você for pego — o que dificilmente acontece, nada acontecerá. Parece dizer que fazer isso não dá em nada, que os corpos das mulheres estão disponíveis e que, inclusive, a lei concorda com isso”, constata a antropóloga