Para Eloisa Samy, advogada, feminista e militante de Direitos Humanos, o judiciário está sendo cobrado pelas mulheres brasileiras a por fim aos casos de assédio e violência: “Não aguentamos mais estarmos sob constante temor de que homens nos ataquem e nos sentimos coagidas pelo sistema de justiça brasileiro que, sob forte influência machista de seus integrantes, relegam nossa segurança à condição de sermos responsáveis por nos cuidar, como se a falta fosse nossa”, diz ela. Leia artigo
(Marie Claire, 03/09/2017 – acesse no site de origem)
A notícia de que um homem ejaculou no pescoço de uma mulher adormecida dentro de um transporte público da cidade de São Paulo tomou as redes sociais e causou comoção e revolta entre as mulheres, após sua soltura por um juiz do fórum da Barra Funda, que decidiu pela não ocorrência do crime de estupro por entender que não houve constrangimento, violência ou grave ameaça.
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O público em geral tem muito pouca compreensão com a prática judiciária, o que, em certa medida, é até compreensível dado, principalmente, a seletividade com que atua o nosso judiciário, que tem por hábito criminalizar condutas ou agravar as penas dos crimes praticados por minorias sociais e demonstrar extrema leniência para com os crimes praticados por pessoas privilegiadas socialmente. Nesse caso em específico, o agressor – negro e pobre -, tem a cara do homem que a Justiça gosta de prender, mas foi posto em liberdade, o que denota que o machismo fala mais alto quando a questão é homem versus mulher. Contudo, a decisão do juiz que presidiu a audiência de custódia do agressor não foi tecnicamente errada, porém, colide frontalmente com o que as mulheres esperam do comportamento dos órgãos de justiça na questão da violência e abuso sexual cometidos contra nós. Os números, absolutamente alarmantes, crescem sem que haja uma efetiva resposta da Segurança Pública e do judiciário para conter ou coibir essas práticas.
“Machismo fala mais alto quando a questão é homem versus mulher”
Eloisa Samy
Mas, voltando ao caso do juiz e das razões que o levaram a decidir pela soltura do acusado, temos, em primeiro lugar, que ele atendeu a um pedido do Ministério Público de absolvição pela prática do crime de estupro. No nosso sistema de justiça, o Ministério Público é o acusador e o juiz não tem o direito de recusar o pedido feito pelo promotor, em razão do princípio da imparcialidade. Assim, o importante agora é saber por que o promotor de justiça da audiência de custódia pediu pela absolvição.
O crime de estupro está disciplinado pelo artigo 213, do Código Penal, assim dispondo: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
“Constranger”, no sentido da lei, é o ato de coação ou intimidação, ou seja, de forçar ou de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo que não queira. O tipo penal também fala que o constrangimento deve ser praticado com violência ou grave ameaça, todavia, não esclarece o tipo de violência, se real ou presumida. O entendimento do promotor de justiça se deu, nesse caso, pela interpretação de que não houve violência real, física, mas, sem sombra de dúvida, houve violência presumida, houve coação e violência moral e até violência psicológica. A definição dessas formas de violência contra a mulher estão claramente contidas na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que, em seu artigo 7, disciplina as várias formas pelas quais pode se dar, incluindo até a violência patrimonial.
Assim, visto dessa forma, errou o Ministério Público em pedir a absolvição do acusado na audiência de custódia, pois em sede de cognição sumária não poderia, em razão do princípio da indisponibilidade da ação penal, optar pela não culpabilidade do agente. Por outro lado, a vítima, segundo relatos, estava adormecida, o que tornaria o crime mais grave (estupro de vulnerável), regulado pelo artigo 217-A, do Código Penal:
“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”
Em suas razões de decidir, o juiz também levantou a consideração de que o acusado necessitaria de tratamento psiquiátrico. Posso até concordar com esse entendimento, mas, de modo algum essa consideração isentaria o agressor do crime. Uma suposta compulsão do agente, dada a contumácia de seus atos (são 17 acusações nos últimos oito anos de cometimento de crimes sexuais), não é justificativa legal que possa acarretar a conclusão de sua inimputabilidade. Do contrário, também homicidas compulsivos não deveriam responder ou ser responsabilizados por seus crimes. É necessário extremo cuidado ao se patologizar condutas criminosas, pois, do contrário, ninguém mais será responsável por seus atos.
“Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil, número que pode ser até dez vezes maior”
Eloisa Samy
Para além das considerações jurídicas, o que mais tem perturbado as mulheres brasileiras é o descaso com que têm sido tratados os crescentes casos de violência contra a mulher, seja no ambiente doméstico, seja na vida cotidiana. Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. O número, no entanto, é reconhecidamente subnotificado e, segundo especialistas, pode ser até dez vezes maior – estima-se que mais de meio milhão de mulheres, por ano, tenham sofrido algum tipo de violência sexual. A proporção, então, seria de quase um abuso por minuto. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que devem ter ocorrido entre 129,9 mil e 454,6 mil estupros no País em 2015.
O crime de estupro é o que apresenta a maior taxa de subnotificação do mundo e isso se explica pela humilhação e vergonha sofridas pelas vítimas em comunhão com a pouca ou nenhuma resposta obtida do Judiciário para a punição dos culpados.
Essa percepção que acomete as mulheres é sentida no momento em que, dispostas a denunciar o crime, são questionadas nas delegacias policiais sobre o seu próprio comportamento que poderia ter dado causa ao abuso. Perguntas do tipo “o que você estava fazendo na rua tarde da noite” ou “que roupa você usava no momento da agressão” são reveladoras de uma cultura machista que se esforça por ainda impor às mulheres a não participação nos atos da vida social e que objetificam nossos corpos. Como advogada, já pude testemunhar agentes de polícia tentando dissuadir mulheres a quem eu prestava assistência de registrarem ocorrência contra seus agressores.
O judiciário está sendo cobrado pelas mulheres brasileiras a por fim a essa situação, por isso a revolta de tantas com a concessão da liberdade daquele homem. Não aguentamos mais estarmos sob constante temor de que homens nos ataquem. Também nos sentimos coagidas pelo sistema de justiça brasileiro que, sob forte influência machista de seus integrantes, relegam nossa segurança à condição de sermos responsáveis por nos cuidar, como se a falta fosse nossa. Está mais do que na hora do Judiciário acordar para a nossa realidade e tomar medidas efetivas pela nossa segurança.
Eloisa Samy é advogada, feminista e militante de Direitos Humanos no Rio de Janeiro