Nas últimas duas semanas, ao menos 20 atrizes, modelos e assistentes disseram ter sido assediadas ou estupradas por Harvey Weinstein, magnata do cinema americano e cofundador da Miramax, produtora de clássicos como “Pulp Fiction”, e da The Weinstein Company.
(BBC Brasil, 13/10/2017 – acesse no site de origem)
Embora seu comportamento não fosse exatamente um segredo em Hollywood – piadas sobre sua abordagem a mulheres já haviam sido feitas no anúncio de indicados do Oscar e na série “30 Rock” -, parte das vítimas só resolveu falar após a publicação das reportagens das publicações americanas The New York Times e da New Yorker. Por meio de nota, Weinstein negou todas as acusações de sexo não consensual.
Ao longo de três décadas, profissionais que vieram a público contar que foram vítimas do produtor mantiveram silêncio, como fazem vítimas de assédio sexual e estupro no mundo todo – esses casos são notoriamente subnotificados.
Em 2015, 45.460 casos de estupro foram registrados no Brasil, ou 22,2 casos a cada 100 mil habitantes, segundo dados do anuário do Fórum Brasileira de Segurança Pública de 2016. Especialistas estimam, porém, que esse número representa entre 10% e 15% do total.
Dados da US Equal Employment Opportunity Commission, agência federal americana que faz cumprir as leis contra a discriminação nos locais de trabalho, mostram que três de quatro casos de assédio no trabalho naquele país não são reportados a supervisores.
Passam pela agência anualmente casos de cerca de 12 mil são por mulheres, segundo Chai Feldblum, integrante da comissão. “Mas sabemos que esse número deve ser próximo de 15% do total de casos”, ressalta.
Por que a maioria das mulheres não denunciam esses crimes? A promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Silvia Chakian, do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), destaca alguns dos motivos.
1) Vítimas não identificam o que sofreram como assédio
A banalização e normalização do assédio sexual faz com que muitas mulheres não consigam identificar o ato como assédio sexual. Outras pensam que aquilo “faz parte do jogo”.
“Existe uma falta de consciência de que o comportamento mascarado como elogio ou cantada não é um mero constrangimento, é crime”, diz Chakian. “As condutas não são só inadequadas – se refletem no código penal.”
2) Medo de que ninguém acredite nelas
Ao jornal The New York Times, a atriz Katherine Kendall expressou sua preocupação depois de ter sido abordada por um Weinstein nu em seu apartamento: “Ele não me tocou. Não tinha certeza se as pessoas ligariam. Se eu não estava sangrando, destruída, quem se importaria?”
“São crimes de difícil comprovação, que acontecem por sua própria natureza de forma velada, entre quatro paredes e longe do olhar de testemunhas”, diz Chakian.
Por isso a importância, diz, que deve ser dada à palavra da vítima. “Não raramente as declarações da vítima vão ser as únicas provas da violência sexual. Mas a palavra da mulher ainda é vista com desconfiança.”
3) Medo do assediador
Medo, medo, medo. A palavra é repetida por quase todas as vítimas de Weinstein, que temiam seu poder de represália na indústria – não só de acabar com suas carreiras, mas de expô-las.
Vítimas de violência sexual têm medo de morrer, de serem violentadas mais vezes, de terem seus filhos agredidos. Para Chakian, a violência sexual também “mina a autoestima da vítima e a humilha, acabando com sua capacidade de resistência”.
4) Vítimas sentem vergonha
“A vergonha é uma questão histórica da violência contra a mulher”, diz Chakian.
“Ainda há a ideia absurda de que a violência sexual refletiria a ‘desonra’ da vítima ou de que ela pode de certa forma ter tido algum comportamento que incentivou ou encorajou aquela prática.”
5) Sentimento de culpa
A promotora lembra que há mulheres que deixam de denunciar porque têm medo de serem responsáveis “pelo fim da carreira de um sujeito”. “Muitas pensam: ‘O sujeito tem família, carreira, eu vou destruir isso?”.
Outras, diz, sentem culpa pelo crime, como se fossem responsáveis pelo comportamento criminoso do assediador.
6) Vítimas são culpabilizadas
“Por que entrou naquela sala à noite?”, “Estava sozinha?”, “Você não estava com uma saia curta?” são perguntas ouvidas por mulheres que denunciam casos de assédio – uma forma de perguntar: “Você não assumiu o risco?”.
“Existe essa perversidade na análise da palavra da mulher vítima de violência sexual. A análise do comportamento é deslocada para a vítima, não para o violador”, diz Chakian.
A sociedade e as instituições acabam incutindo, assim, a culpa na vítima. “Sua palavra é sempre analisada como possível falsa denúncia.”
7) Vítimas têm medo de reviver experiência
À reportagem do The New York Times, Kendell disse que, anos depois da abordagem de Weinstein, ela o viu em um evento e começou a tremer. “O nome dele ainda faz meu corpo e minha cabeça estremecerem”, afirmou.
“A mulher não quer reviver a violência sexual. E ela é instada a contar sua história por parte das instituições e depois é confrontada e submetida a novas oitivas”, diz Chakian, explicando que isso faz com que a vítima tenha que reviver diversas vezes o caso.
8) Medo de perder o emprego
Quando o assédio é no trabalho, vítimas temem perder o emprego.
É o caso da maior parte das mulheres vítimas de Weinstein. Emily Nestor, uma assistente que trabalhou com ele em 2014, disse à revista New Yorker que teve “muito medo” dele. “Sabia como ele era bem relacionado. Se o irritasse, nunca teria uma carreira na indústria.”
“A vítima tem medo de repelir o assédio ou denunciá-lo e passar a ter sua subsistência ou carreira ameaçada”, afirma Chakian.
No caso de Hollywood, diz, o medo era ter a carreira arruinada ou ser exposta. “Na nossa realidade, é o medo da advogada, da médica, da enfermeira ou da professora de se ver sem um emprego.”
9) Medo de enfrentar processo e “não dar em nada”
Há um medo “justificado”, diz Chakian, “de ser exposta e não haver resultado” – caso de algumas das vítimas de Weinstein que o denunciaram.
“É um medo justificado por causa dessa difícil comprovação da violência”, explica Chakian. “Temos que fortalecer o sistema para que o sistema proteja as vítimas.”
10) Dificuldades para denunciar/reportar e medo da violência institucional
As dificuldades para denunciar casos de assédio não são só na polícia, avalia Chakian. “Há dificuldades de acesso a canais oficiais, como o departamento de recursos humanos das empresas”, diz.
Uma funcionária da empresa de Weinstein relatou à New Yorker que o RH dali era “o lugar onde nada era levado à cabo” porque tudo, de alguma forma, chegava nele.
A forma como as instituições tratam a mulher pode levá-las à revitimização, ou seja, vitimá-las com perguntas que incutem a culpa nela.
11) Crimes são tratados como um problema entre homem e mulher, não como problema da sociedade
“Homens de Hollywood, vocês acham que o que aconteceu é muito triste, mas não é seu problema?”, perguntou a atriz americana Lena Dunham em um artigo para o jornal The New York Times nesta semana. “Infelizmente, é problema de todos nós (…) O silêncio de Hollywood, especialmente o de homens que trabalharam ao lado de Weinstein, só reforça a cultura que impede as mulheres de falarem.”
Crimes como esses comumente são varridos para baixo do tapete, tratados como se fossem um problema da vítima e do criminoso. Há casos, diz Chakian, em que não é “conveniente” escancarar o comportamento de um sujeito bem-quisto e bem relacionado na empresa ou de um chefe. Mas é preciso “reforçar a ideia de que todos são responsáveis”.
“Não existe território neutro. Todos se responsabilizam quando silenciam ou se omitem frente a um caso de assédio.”
Por que outras mulheres falarem ajuda
“Ao perceber que não estão sozinhas e que várias mulheres passaram pela mesma situação, uma mulher dá força para que outra pronuncie a violência que sofreu”, diz a pesquisadora Jackeline Romio, doutora em demografia pela Unicamp e especialista em mortalidade feminina pela violência de gênero.
Foi o que aconteceu com as mulheres que denunciaram Weinstein depois da publicação de reportagens sobre seu comportamento e com as que denunciaram o comediante americano Bill Cosby. A mulher, que tem sua palavra vista com desconfiança, como observou Chakian, não se vê mais sozinha frente a um homem todo poderoso.
Para garantir que mais mulheres denunciem casos de assédio e estupro sem que uma primeira tenha que ter “muita coragem” para isso, diz Chai Feldblum, da US Equal Employment Opportunity Commission, é preciso que a “sociedade crie um ambiente seguro para as mulheres – o que ainda não aconteceu”.
Juliana Gragnani