No debate sobre a tipificação de crimes, a problemática não é exatamente de pena e, sim, de contexto sociocultural
(El País, 26/10/2017 – acesse no site de origem)
As repercussões no cotidiano forense acerca da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), que incluiu qualificadora no Código Penal para as mortes violentas de mulheres por razões da condição do sexo feminino, têm revelado em alguns casos uma faceta cruel: a preferência por essa capitulação ou a readequação de versões para escapar, por exemplo, ao tipo penal do roubo com resultado morte (latrocínio).
Não se pretende polemizar a evidência técnico-jurídica de que se chega à tipificação de qualquer fato pelo conjunto probatório obtido na investigação, a partir do qual se apura qual o ânimo do agente, vale dizer, se a conduta decorreu da vontade de subtrair bem material, mediante grave ameaça ou violência, que pode resultar em morte; ou do ânimo deliberado de tirar a vida. O que se pretende é suscitar o debate sobre as percepções do feminino.
Há importante distinção de rito entre os delitos, sendo o latrocínio julgado pelo juiz de carreira e o feminicídio pelo Tribunal do Júri, ou seja, pela sociedade em geral representada pelo corpo de jurados sorteado a cada sessão. Quando as circunstâncias do crime são limítrofes, a polêmica se instala. O latrocínio tem pena prevista no Código Penal de vinte a trinta anos, e o feminicídio de doze a trinta anos. Porém, considerando que a maioria das penas no Brasil é fixada no mínimo legal, o feminicídio, de regra irá ensejar reprimenda mais branda. A pena final em cada sentença irá depender do caso concreto e da coexistência de outras qualificadoras, mas, considerando a pena mínima mais baixa, as penas para os crimes de feminicídio serão mais curtas que aquelas do latrocínio e por via de consequência será menor o tempo de condenação em regime fechado.
Muito se tem falado acerca da supervalorização da propriedade em detrimento à vida, levantando-se bandeira para a elevação dos parâmetros de pena do feminicídio. É fato que o Direito Penal brasileiro é de viés conservador quanto à defesa dos direitos humanos, em especial no que se refere à temática de gênero, todavia há sentido lógico, para além da mera defesa da propriedade, na pena elevada para o latrocínio, eis que, se o estado mental que norteia a ação é a intenção de subtração de bens materiais, não é preciso matar, daí porque o que se pune de forma mais contundente é justamente o absoluto desprezo à vida diante da ausência de motivação pessoal para ceifá-la.
E também se tem falado que essa diferença de pena é a razão pela qual muitos acusados e suas defesas preferem que se conclua pela capitulação no feminicídio e não no latrocínio em casos de conjunto probatório borderline. A pena menor para o feminicídio, por óbvio, será já de partida mais favorável ao acusado. Porém, não se limitam à pena mínima as razões da preferência pelo novo tipo penal. Em verdade, a questão é ampla. A problemática não é exatamente de pena e, sim, de contexto sociocultural.
O latrocínio é crime que não comporta muitas especulações relativas ao comportamento da vítima. É evidente que sempre poderá haver alguma perquirição acerca do seu grau de exposição a risco, mas será de pouca ressonância no malferimento da sua respeitabilidade. Por outro lado, raramente será escusável a conduta do ofensor. O feminicídio, por outro lado, seja pela dinâmica do discurso em plenário do Júri ou pela natureza do crime em si, costuma extrapolar os limites do processo e da prova.
O termo femicide foi utilizado pela primeira vez pela socióloga Diana Russell no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, no ano 1976 e, ao fim dos anos noventa, reformulado em língua hispânica de “femicídio” para “feminicídio” pela antropóloga Marcela Lagarde, em correlação aos desaparecimentos e às mortes violentas de mulheres em Ciudad Juárez, no México. Ambas as grafias são aceitas, sendo que, em resumo, a primeira se refere à forma mais extrema de violência contra a mulher cuja motivação é seu próprio sexo biológico e a não conformidade aos estereótipos a ele atribuídos; e a segunda se refere a esses mesmos crimes inseridos na conjuntura de impunidade e negligência do poder público.
De qualquer sorte, resta claro na doutrina que é um crime que decorre da desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, bem como na disparidade entre direitos, deveres e liberdades efetivamente vivenciados por cada sexo biológico. É um crime de través misógino, de vertente de desprezo, de âmago de fel, de essência de dominação.
O legislador brasileiro optou pela expressão “feminicídio”, o que implica em dizer que fez o mea culpa em nome do Estado, admitindo, ainda que implicitamente, sua inadvertência quanto à violação dos direitos humanos das mulheres. A redação inserida no Código Penal considera que há razões de “condição do sexo feminino” quando o crime envolve “violência doméstica” ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Houve uma opção estratégica pela expressão “condição do sexo feminino” ao invés de “condição de gênero”, muito decorrente do preconceito popular com a palavra “gênero”, que seja por má-fé ou simples ignorância ganha contornos de total aversão em um país cada dia mais retrógrado e anacrônico.
Essa opção não muda o fato de que o feminicídio é violência de gênero. Isso porque “gênero” é um conceito que observa o fenômeno da masculinidade e da feminilidade com suas conformações anatômicas e fisiológicas inseridas nos cenários socioculturais. Biologia, psique, história, política, religião, meio social definem o que é ser “homem” e “mulher”. Definem as características atribuídas a cada sexo biológico e a expectativa de que todos se comportem conforme o coletivamente esperado, que sejam adequados às convenções estruturantes.
Tais concepções são por vezes tão naturalizadas que parecem mesmo advir da natureza das coisas. Os estereótipos florescem nesse campo fértil. Ideias preconcebidas de como deve agir um macho de verdade ou uma moça decente. Chavões sobre sexualidade – dita exacerbada e incontrolável no homem, e contida e fidelizada na mulher. Clichês cor-de-rosa sobre domesticidade e subserviência voluntária a príncipes (des)encantados. Lugares comuns para justificar ciúme travestido de amor, posse disfarçada de cuidado, agressividade mascarada de valentia, covardia dissimulada de brio.
É nesse quadro de rótulos, moldes, crendices, superstições, irreflexões, prejulgamentos e antepaixões que se travam os debates no Tribunal do Júri. No passado a legítima defesa da honra foi incontáveis vezes vitoriosa em plenário, hoje ela ressurge encoberta no verniz da ampla defesa. E, para prosperar esse argumento, da mulher não basta subtrair a vida, é preciso que dela se arranquem as vísceras da dignidade.
Sejam reais ou fictícias as versões sobre a vítima apresentadas aos jurados, em regra de infidelidade, despudor ou hostilidade imputadas às vítimas, elas ganham dimensão estratosférica no discurso da tribuna. Esquece-se a mãe, a companheira, a filha, a profissional, a amiga. Cria-se a aberração, a femme fatale, a responsável pela expulsão do Paraíso. Assim, além da pena mais branda, o feminicídio oferece oportunidades de absolvição inexistentes na defesa do latrocínio.
Mas a realidade é que mulheres morrem todos os dias por meros sopros de insurreição, suspiros de irresignação, brisas de individualidade, aragens de independência. Que medo é esse da mulher sem medo de que fala Eduardo Galeano?1 Os ventos da liberdade provocam mudanças, às vezes tempestades. Por que esse medo da mulher que é livre para fazer as próprias escolhas, viver plenamente a sexualidade, ir ao ápice da intelectualidade? Da mulher que não se pode controlar, submeter, subjugar?
O medo vem também dos estereótipos – não ser suficiente, não ser viril, não poder mais gozar de todos os privilégios da condição histórica de dominante. Estereótipos que limitam muitas mulheres das suas infinitas potencialidades e, da mesma forma, confinam tantos homens nas amarras da premência de se provar másculo, de se enquadrar nas características atribuídas socialmente ao seu sexo biológico.
Por que o Tribunal do Júri? Porque lá serão julgados pelo corpo social que detém idênticas referências distorcidas de masculinidade e feminilidade. Alguém pode perguntar: e o juiz? Não estaria ele sujeito às mesmas narrativas erótico-afetivas? Claro que sim. Todos estamos. Entretanto, no âmbito do processo de rito comum, há menos espaço para ruídos sentimentais na apresentação dos fatos e da prova, não há momento de peroração enérgica. A dramaticidade é contida pela técnica.
Ademais, no Júri há a gravidade da cerimônia e a solenidade da presença do acusado, fatores que revolvem as emoções dos jurados, em especial diante da ausência da vítima, que é só um espectro, uma sombra. Já não se pode vê-la, senti-la, auscultá-la. Não é possível sondar suas sinceridades ou insídias. Ela jaz ali, sem corpo, revelada apenas pela voz do Promotor de Justiça que, em plenário, tem a missão constitucional de lhe dar alma.
O que se pode ter como certo é que como corpo social somos, coletivamente, responsáveis pelo que acontece no Tribunal do Júri, uma vez que aquiescemos e transigimos com práticas discriminatórias e somos relutantes em desapegar dos preconceitos. O discurso lesivo às reputações das vítimas levado a plenário nada mais é do que a reverberação exagerada dos saberes popularizados. Por lá a morte violenta se pode justificar pelo descontrole do homem que, coitado, viu-se diante de uma mulher que não estava a exercer o papel social atribuído ao seu sexo biológico. Ela deu causa à própria morte. Faltou-lhe a passividade, a subserviência, a fragilidade, o pudor, o recato, a suavidade, a beleza, a graça, a indulgência, a misericórdia, a submissão, a doçura, o zelo, a deferência, a adoração. Faltou-lhe se encaixar em todas as expectativas sociais irrogadas à feminilidade.
O Brasil, porém, já foi muito pior com suas mulheres, portanto, não se pode abandonar a fé na evolução do tecido social. Mas é premente que se discutam novas formas de relações íntimas e possibilidades pacíficas de ruptura. É inadiável que a sociedade deixe de se regozijar com padrões de comportamento bárbaros, ou de exercer pressão por soluções belicosas e tomadas de satisfação coléricas. É necessário se desprender da ideia de ser dono de alguém ou de atar-lhe a existência aos grilhões do arquétipo. Esse pensamento é escravocrata. Pessoas são livres. Sim, por vezes algumas que nos são preciosas nos magoam profundamente; outras que nos são estranhas se comportam de maneira completamente desviada das nossas crenças e certezas. Como administrar isso? Aceitando a diversidade é uma maneira. Apenas deixando ir é outra. Curando-se da fantasia de onipotência talvez seja a melhor.
É também impreterível estancar as veias abertas da impunidade. Não há sentimento nobre em feminicídio. Mata-se por incapacidade de lidar com as próprias frustrações, por egolatria que não tolera minimamente a rejeição. Mata-se por ódio. Mata-se por rancor. Mata-se por poder. Assim caminha a humanidade, como diz Lulu Santos, com passos de formiga e sem vontade. A responsabilização célere e proporcional à violência ainda é remédio vital. A porta de saída dessa escuridão é a resistência pela educação da civilidade.
Ana Lara Camargo de Castro é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público e mestre em direito pela Universidade do Estado de Nova York. É coautora de Exposição pornográfica não consentida na Internet’ e Stalking e Cyberstalking, ambas pela Editora D´Plácido.