Uma das disfuncionalidades do nosso sistema de voto proporcional puro é que ele incentiva deputados a jogar apenas para a sua plateia, ignorando ou mesmo contrariando os interesses do conjunto do eleitorado.
Por vezes, esse tipo de rebeldia é necessário para fazer avançar questões que tenham pouco apelo popular, como direitos de minorias. Em nosso sistema, porém, os bônus e os ônus eleitorais se encontram tão desbalanceados que convidam à dissimulação. Faz sentido para um deputado defender a bandeira esperada por seu nicho eleitoral, torcendo para que seja rejeitada pelo plenário.
Esse foi, acredito, o caso dos deputados da comissão especial que contrabandearam para uma PEC que analisavam dispositivo que restringiria ainda mais o direito ao aborto no Brasil. Nossos representantes, ligados à bancada da Bíblia, pretendem inscrever no texto constitucional que a vida tem início com a concepção.
Não é uma mudança trivial. Se aprovada, o que felizmente parece improvável, ela faria mais do que apenas reverter as três situações em que a interrupção da gravidez está autorizada (feto anencefálico, estupro e perigo de vida para a mãe).
Se a Carta dissesse que a vida é inviolável desde a concepção e que todos são iguais perante a lei, a consequência lógica seria equiparar a pena do aborto à do homicídio doloso. Mais, a do homicídio doloso qualificado, já que a vítima não tem chance de defesa. Assim, o auto-aborto deixaria de ser um crime que rende de um a três anos de detenção e passaria a ser um que cobra de 12 a 30 anos de reclusão. O Estado estaria então obrigado a identificar, processar e encarcerar em massa as dezenas de milhares de mulheres que abortam a cada ano com o mesmo afinco que caça os mais vis assassinos.
Duvido que os deputados de fato desejem isso. Mas não hesitam em fazer o teatro da defesa da vida para suas bases. O nome disso é hipocrisia.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou ‘Pensando Bem…’ (Editora Contexto) em 2016.