Nem criminalização nem religião são capazes de impedir casos de aborto no país; tema envolve direitos da mulher e saúde pública
(O Globo, 30/11/2017 – acesse no site de origem)
Da última vez em que usei este espaço para falar de aborto, dois anos e meio atrás, a internet fora tomada por fotos de grávidas em defesa da vida. Eram, na verdade, mulheres tentando interferir nos direitos sexuais e reprodutivos de outras. Desde então, o debate não avançou um milímetro. Pelo contrário, retrocedeu. Tramita num Congresso Nacional predominantemente masculino – são homens 459 dos 513 deputados e 68 dos 81 senadores – a PEC 181, que ameaça a autorização constitucional para o abortamento em casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto anencéfalo. Ainda anteontem, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, negou à Rebeca Mendes da Silva o pedido para interromper de forma segura uma gestação de seis semanas. À ação, movida pelo PSOL, foi adicionada uma carta à ministra redigida pela própria gestante, de 30 anos, mãe de dois filhos, com contrato de trabalho até fevereiro de 2018, universitária bolsista, separada do pai das crianças, de quem engravidara numa relação eventual no intervalo de troca de método contraceptivo no sistema público de saúde.
Rebeca apelou à Rosa de mulher para mulher. Nem assim foi ouvida. No texto, ela reivindicava o direito de não se submeter aos métodos abortivos de alto risco a que quase meio milhão de brasileiras recorrem anualmente. A edição 2016 da Pesquisa Nacional do Aborto estimou que, no país, 4,7 milhões de mulheres de 18 a 39 anos já abortaram; uma em quatro se declara católica ou evangélica.
Quase metade (48%) ingeriu medicamentos; igual proporção precisou ser internada para finalizar o procedimento. É indispensável assinalar quanto o abortamento clandestino custa ao Estado. Diz o estudo: “Considerando que grande parte dos abortos é ilegal e, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto com um dos maiores problemas de saúde pública do Brasil”.
Sem o acolhimento da Justiça ou do governo, sem políticas públicas adequadas, se insistir em interromper a gravidez, Rebeca corre risco de internação, mutilação, morte. Saindo viva, pode responder a processo criminal; três artigos do Código Penal (125, 126 e 127) tratam do tema. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro traçou o perfil de mulheres que respondem judicialmente por aborto. O estudo exclusivo confirma o que se supunha. As processadas por provocar abortamento são, em maioria, negras, de baixa renda, pouca escolaridade. Submetem-se por iniciativa própria, com ajuda de parentes ou obrigadas pelo parceiro, às vezes com gestação avançada. Mais expostas a complicações, vão parar no SUS. Em outro grupo estão as envolvidas em investigação de clínicas clandestinas. São, em geral, mulheres brancas, de renda e nível de instrução maiores.
“Notamos que o primeiro grupo sequer tem assegurado o direito à vida; é no segundo que o debate trata de direitos sexuais e reprodutivos. Em todas as situações, constatamos que a criminalização não diminui o número de casos. A prática é comum, há poucas ações (de 2005 a 2017, a Defensoria identificou 78 processos ativos). Criminalizar o aborto tem o efeito de impedir o acesso de mulheres à informação e ao serviço de saúde, levando-as a sofrimento, tortura e morte”, afirma Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa da Mulher na DPRJ.
Aborto é prática tão antiga quanto corriqueira no Brasil. Nem a criminalização nem a religião foram capazes de impedir. É agenda de saúde pública e como tal deve ser debatido por mulheres, profissionais da área, formuladores de políticas públicas. Não é tema para guardiões da moral, tampouco para 18 homens de uma comissão na Câmara dos Deputados.