Defensoria do Rio levantou dados de dezenas de mulheres que interromperam a gravidez no estado
(Nexo, 04/12/2017 – acesse no site de origem)
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro divulgou, no dia 30 de novembro, um levantamento feito a partir dos processos de aborto em trâmite no estado, com o objetivo de traçar o perfil das mulheres que são criminalizadas por abortarem. No Brasil, o aborto é considerado crime contra a vida.
De todos os processos relacionados a aborto que, entre 2005 e 2017, estiveram ou estão em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (pouco mais de cem), a pesquisa chegou a um conjunto de 42 mulheres, quantidade de rés que respondem atualmente no estado por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros. Por ano, estima-se que cerca de meio milhão de brasileiras realizem abortos clandestinos, segundo uma pesquisa do Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
As mulheres processadas são enquadradas no artigo 124 do Código Penal, que estabelece pena de detenção de um a três anos por “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”.
Das 42 mulheres que são rés, metade é negra, pobre, já tem filhos. A maioria das processadas tem entre 22 e 25 anos e mora na capital. Elas não têm antecedentes criminais. Além disso, 39 delas foram processadas pela prática consumada do aborto, e três pela tentativa.
O estudo, realizado pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da defensoria do estado, foi solicitado pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher do órgão.
Como abortam
Na pesquisa, as mulheres processadas foram divididas em dois grupos:
1.mulheres que abortaram sozinhas ou com a ajuda de um terceiro
Foram 20 (cerca de 48%) as mulheres que, dentro do conjunto analisado pela pesquisa, tentaram induzir um aborto em si próprias. Desse primeiro grupo, 60% das mulheres eram negras e 40% brancas.
Os métodos mais frequentes entre elas são medicamentos e chás abortivos. O Citotec, um medicamento composto pela substância misoprostol e indicado para o tratamento de úlceras, é o mais citado. Provoca fortes contrações uterinas, e, por isso, é utilizado por mulheres que desejam abortar.
Para metade das mulheres desse primeiro grupo, o aborto se deu em casa ou até no local de trabalho. Na outra metade, a expulsão do feto ocorreu no hospital, para onde se dirigiram ou foram levadas já passando mal. Se houve ajuda de um terceiro, essa pessoa quase sempre é alguém da família ou aquele com quem teve relação sexual.
A maior parte (17 das 20) desse grupo já enfrentava mais de três meses de gestação. O período considerado mais seguro para realização do aborto vai até os primeiros três meses.
Esse dado indica que o primeiro grupo é ainda mais vulnerável, segundo a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio, Carolina Haber.
“Da leitura dos depoimentos dos processos, é perceptível que essa mulher que aborta sozinha demora mais para tomar essa decisão porque não tem recursos”, disse Haber ao Nexo. “Às vezes, é até difícil para ela conseguir o dinheiro [entre R$ 300 e R$ 500] para comprar o remédio. Ela posterga essa decisão porque não sabe muito o que fazer. Há mulheres que tentam várias coisas, até que alguma hora algo dá certo. Mas isso demora.” Segundo Haber, muitas das mulheres desse grupo estão no interior do estado.
2. mulheres que abortaram em clínicas clandestinas
O restante (22, que representam cerca de 52%) das mulheres acusadas são as que estavam realizando ou tinham acabado de realizar procedimento para encerrar a gravidez em clínicas clandestinas.
A maioria dessas clínicas estão concentradas na capital do estado. Em todos os casos em que consta a informação da duração da gravidez (que são 11, metade do grupo), a gestação estava abaixo de doze semanas quando a mulher abortou.
Segundo o estudo, esse dado indica que mulheres com condições financeiras de pagar pelo procedimento – que oscila entre R$ 600 e R$ 4.500 – conseguem tomar a decisão com mais rapidez e, portanto, em geral, realizam a interrupção enfrentando menor perigo no que diz respeito aos riscos do aborto em gravidez avançada.
Embora não haja informações sobre escolaridade ou raça em alguns dos processos, o estudo afirma, a partir dos dados disponíveis, que há mais mulheres brancas e com maior escolaridade neste grupo.
Quem denuncia
Para as mulheres que abortaram em clínicas, os processos decorrem de investigação policial desses espaços. Além delas, os funcionários envolvidos e eventuais acompanhantes também estão sendo processados.
Já para as que o fizeram em casa (ou em outro local que não uma clínica) e acabaram no hospital, em geral, a investigação parte de uma denúncia do próprio hospital ou de um pedido de ajuda de familiares para socorrer a mulher que abortava em casa.
Como regra, os hospitais que fizeram a denúncia eram públicos ou receberam repasses de algum ente estatal para atender pacientes pelo SUS, o Sistema Único de Saúde. Também há casos de denúncia pelo posto de saúde/UPA. Apenas em um caso o hospital era da rede privada.
O estudo destaca que, durante o atendimento, muitas “são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros que deveriam auxiliá-las a entender o que ocorreu”, e chegam a abortar no banheiro do hospital.
Em algumas situações, a denúncia do hospital está relacionada ao pedido de remoção do feto, que precisa ser feito. Em dois casos ocorridos na capital, porém, o estudo aponta que o policial de plantão no hospital foi chamado ainda durante o atendimento.
Haber caracteriza o enfrentamento da via criminal como uma dupla criminalização dessas mulheres, que já enfrentaram um processo de grande sofrimento até serem denunciadas.
“Ninguém deixa de fazer o aborto porque é crime, mas para quem faz e é descoberta, a criminalização é mais cruel do que para qualquer outra pessoa, pelo processo [pela qual passou]”, disse.
Consequência
O mais provável é que as mulheres que estão sendo processadas por abortarem não cheguem a cumprir pena. Isso porque, sem antecedentes criminais e respondendo por um crime cuja pena mínima é de um ano, o processo pode vir a ser suspenso.
Apesar disso, a criminalização submete a mulher fragilizada a um longo caminho.
“Normalmente, essa mulher chega para ser atendida no hospital porque está em um processo doloroso. Muitas vezes, demora para procurar o hospital e, quando o faz, é recebida de uma forma preconceituosa, grosseira. Sai direto de lá para a delegacia, para prestar depoimento. Aí sofre todo o processo: só depois de o inquérito ser concluído, das pessoas serem ouvidas na delegacia, é que o Ministério Público pode propor a suspensão”, explicou Carolina Haber.
Depois, segundo a defensora, a mulher ainda pode ter que comparecer mensal ou semanalmente ao fórum para provar que está cumprindo as condições para que o processo seja extinto, como, por exemplo, não mudar de endereço.
As que são vítimas de aborto
Apesar de não ser seu foco direto, o relatório da pesquisa também inclui informações sobre mulheres que não estão sendo processadas, mas foram vítimas de abortos provocados por terceiros, normalmente familiares ou namorados, sem o seu consentimento.
Os denunciados nesse tipo de processo (foram 15 desse tipo, contabilizados pelo estudo), enquadrados pelo artigo 125 do Código Penal com pena prevista de três a dez anos, as obrigaram a praticar aborto, seja forçando-as a ir até uma clínica (3 casos), a ingerir remédio abortivo (4) ou agredindo-as fisicamente para levá-las a abortar (4). Em três casos, o crime chegou ao conhecimento da Justiça porque as mulheres morreram.
Juliana Domingos de Lima