No ano em que Lázaro Ramos publicou suas memórias e Lima Barreto foi celebrado, racismo ainda é um tema incontornável
(O Estado de S. Paulo, 29/12/2017 – acesse no site de origem)
O economista norte-americano Albert O. Hirschman, que conheceu de perto os malefícios de regimes totalitários e tomou parte de movimentos antifascistas, escreveu um artigo, hoje clássico, chamado Tomando a Comensalidade a Sério. Segundo ele, as pessoas que se reúnem à mesa estão publicamente unidas para celebrar a ocasião. No entanto, na esfera privada, mantêm suas diferenças intocadas. Diversidade, explica o professor, nunca foi sinônimo de diferença e muito menos de igualdade.
Partindo de metáfora semelhante, mas falando de um lugar distinto, os Mutantes, em Panis et Circenses, cantaram em 1968, e na forma tropicalista, como “essas pessoas na sala de jantar” estão apenas preocupadas “em nascer e morrer”.
Juntos mas diferentes é metáfora antiga no Brasil. Na época da pós-abolição, corria pelas ruas um provérbio popular que afirmava que, se “a liberdade era negra, já a igualdade continuava branca”. O dito se referia à Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no Brasil, mas o fez de forma muito conservadora: sem pensar em ressarcimentos ou na futura inserção das populações de libertos que ficaram submetidas a séculos de escravidão. A frase enigmática também ressoava às novas formas de nomear a diferença: as teorias deterministas raciais que contavam com o beneplácito da ciência e entravam em voga nesta época no País. Ou seja, enquanto a lei prometia igualdade, a biologia a desmentia e deixava ainda mais rígida a noção de que raças correspondiam a realidades totalmente distintas.
Não foram poucos aqueles que se opuseram a esse tipo de modelo, dentre eles a imprensa e associações negras. Mas o certo é que o tema permaneceu em banho maria, e por muito tempo. Na direção oposta se difundiu a interpretação de que por aqui vigorava uma “democracia racial”, seguindo-se o suposto enganoso de que mestiçagem era sinônimo de igualdade. Não é, pois não existe mistura sem separação.
Basta dizer que demorou para que a questão das cotas ganhasse a importância que merece no Brasil. Prova disso é que a USP, a maior universidade da América Latina, apenas neste ano finalmente aprovou o sistema de cotas. Este é um modelo provisório, que busca desigualar para igualar, ressarcindo máculas da nossa história. Mas objetiva mais: transformar as universidades em locais mais diversos e, portanto, mais ricos em ideias e experiências.
O certo é que, se o ano de 2017 vai ficar na história como aquele que “não foi”, em um aspecto ele “foi”: a questão racial estourou no País todo, nos mais diversos setores e deixou mais claro para os brasileiros a realidade dura da discriminação e do racismo histórico e estrutural vigente no País.
Cito poucos exemplos mas que, quem sabe, representam muitos. O ano que vai passando trouxe uma bela novidade na lista dos mais vendidos. Lázaro Ramos, numa biografia corajosa, mostrou, na “sua pele”, o quanto o racismo pode ser “complexo” no Brasil. Lázaro, que morava num lugar afastado na Bahia, precisou ir para a cidade grande e assim “descobrir” sua raça.
O mesmo caminho ritual, digamos assim, fez Isaías Caminha, personagem dileto do escritor Lima Barreto. Foi também numa parada de trem, quando ia para a cidade grande, neste caso o Rio de Janeiro, que Isaías sentiu pela primeira vez a dor da discriminação. O dono de um bar atendeu rapidamente um rapaz de “pele clara”, e, no caso dele, demorou. Quando enfim resolveu lhe servir uma “média”, ainda comentou com escárnio: “aqui não tem bandido, não”. Isaías Caminha era um dos alter egos de Lima Barreto que, no começo da Primeira República, denunciou, quase como voz solitária, o racismo herdado da escravidão mas perpetuado em seu contexto.
Não parece coincidência, pois, que neste ano de 2017, Lázaro Ramos tenha feito tanto sucesso, e que Lima Barreto foi escolhido como autor homenageado da Flip. Custou muito, mas deu muito certo. O escritor carioca arrombou a festa com sua literatura irreverente, “militante” e que permanece tão atual. Também foi uma boa coincidência Lima ter sido selecionado num ano marcado pela crise. Uma crise política, financeira, institucional e cultural. Mas, no caso da Flip, tudo se reinventou: a antiga tenda se mudou para a igreja; vimos menos estrelas estrangeiras mas mais autores brasileiros negros; mais mulheres de uma forma geral e o saldo foi pra lá de positivo. Lima passeou pelas ruas de Paraty.
Lima foi o autor certo para o momento certo; um escritor que questionou a corrupção, denunciou o racismo, reclamou da falta de inclusão social, lamentou a qualidade do jornalismo e da literatura de “aperitivo” que o cercava. Por conta disso tudo, não emplacou no momento em que viveu; morreu jovem, com 41 anos, no ano de 1922.
1922 foi um ano emblemático para o Brasil, que celebrou seu centenário de independência e presenciou a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Já para Lima, 1922 foi um ano de “fim”; não de “começo”. 2017 também vai ficar na história como um ano de “fim” (e não são poucos aqueles que não veem a hora dele acabar). Mas foi também ano de “começo” para um debate mais maduro sobre o racismo no Brasil.
Lázaro Ramos chegou na Flip como estrela global e saiu de lá pensador e escritor consagrado. Já Lima virou símbolo de um Brasil mais atento às discriminações de todo tipo, e ciente de que a corrupção é mesmo o inimigo número 1 da democracia. Aliás, espero, sinceramente, que Lima Barreto não vire apenas cometa reluzente e passageiro. É hora de dar a ele o lugar que bem merece no nosso cânone literário e reconhecer que este é um escritor que não tem “data de validade”. Continua provocando.
Mas houve até quem pegasse a marola em sentido contrário. Foi no ano de 2017 que Daniela Thomas lançou Vazante, um belo filme sobre uma terra sem tempo, geografia ou local. Contou a história de sua família, de muitas famílias mestiças, e narrou com linguagem cinematográfica apurada o nascimento de um Brasil marcado pelo estupro. O silêncio presente no filme, a falta de comunicação entre os personagens geraram, porém, imenso ruído. A cineasta não imaginava, mas passou por uma sabatina, e o filme foi chamado, por alguns, de “história de sinhá moça”. Não concordo com a definição, até porque a violência está por toda parte, a despeito do protagonismo de uma menina de 12 anos, sozinha nesta terra da danação, em que tudo falha, seca, e por isso “vaza”.
Vale, porém, reter a reação forte que o filme mereceu. Na minha opinião, ela foi um sintoma. Afinal, uma recepção tão acalorada só pode mostrar que esse era o filme certo na hora certa. Mexeu, comoveu e dividiu o público.
Historiador é ruim de previsão e não vou me atrever a fazer a minha para 2018. Mas penso que, com muito atraso, neste ano que vai passando aprendemos a entender que raça é um tema incontornável da nossa agenda cidadã. Raça continua a ser um “plus” perverso nos nossos censos, que mostram como negros morrem em maior número e mais jovens, têm menos acesso à educação e à saúde, têm piores postos e salários no trabalho. A gravidade do assunto mostra, pois, como ele não é de interesse apenas das populações diretamente afetadas pela discriminação – diz respeito a cada um de nós.
Em 2018, faremos 130 anos da abolição formal da escravidão. Por isso, “2017 há de desaguar em 2018”. E torço para que consigamos imaginar e fazer vingar a utopia, tantas vezes adiada, de um Brasil mais múltiplo, diverso e menos desigual. Um país mais democrático. Só não vale abolir o diálogo, já que a democracia não se realiza apenas no debate entre iguais. Ela se dá no embate aberto, franco e transparente com e entre as diferenças.
Que 2018 chegue como jeito de ano combativo, mas também aberto à conversa entre iguais, na sala de jantar.
*Lilia Moritz Schwarcz é historiadora e antropóloga, professora titular da USP e global scholar na Universidade de Princeton