O debate sobre abuso está na sala de casa, nas repartições e nos espaços de convivência das cidades brasileiras
(O Globo, 10/01/2018 – acesse no site de origem)
A segunda semana deste janeiro de 2018 merecia terminar como começou. Era noite de domingo na Califórnia, quando Oprah Winfrey disparou flechas lambuzadas de coragem na direção de mentes e corações femininos planeta afora. Em discurso histórico na premiação do Globo de Ouro, a abertura da temporada de festas da firma do audiovisual americano, apresentadora, atriz, produtora e empresária negra, dona da zorra toda decretou o fim da era de silêncio e submissão de mulheres aos abusos masculinos no mercado de trabalho. Foi o clímax de uma trama, iniciada meses antes, sobre denúncias de assédio sexual que deixaram pelo caminho figurões do meio.
Tanto os EUA quanto o mundo mereciam saborear por mais tempo, uma semana que fosse, as palavras de Oprah. Afinal, o debate sobre abuso é universal. Mas havia uma centena de francesas no meio do caminho. E o grupo, Catherine Deneuve à frente, contra-atacou a mobilização do lado de cá do Atlântico Norte devolvendo a palavra aos protagonistas de sempre. Quando mulheres – literalmente, dada a predominância de figurinos pretos em adesão à campanha Time’s Up – vestiram-se de argumentos contra a violência de gênero, as dissidentes escreveram pela “liberdade dos homens em importunar”. Deixaram de lado o ponto de vista feminino, abriram mão do lugar de fala.
Em vez da metáfora dos vestidos pretos no tapete vermelho, ícones de elegância ora transformados em uniforme da resistência, as francesas lançaram-se à subordinação explícita. O manifesto do “Le Monde” naturaliza joelhos tocados, beijos forçados, correspondência inadequada, intimidade não consentida. Ao longo da História, o rol de más práticas, para dizer o mínimo, tem humilhado, sequestrado oportunidades, subjugado mulheres que esperavam ser contratadas, cobradas e avaliadas pelo desempenho profissional. Foram, contudo, atravessadas pela percepção de propriedade do corpo feminino pelo masculino, pelo exercício do poder.
O debate sobre abuso não é americano ou francês. Está na sala de casa, nas repartições e nos espaços de convivência das cidades brasileiras. Não se relaciona com as cantadas descompromissadas das ruas – embora, por aqui, muitas desemboquem em ofensas, xingamentos e ejaculação no transporte público. Assédio é comportamento criminoso. Tem a ver com pessoas serem impedidas conseguir um emprego ou ambicionar cargos e salários por serem mulheres. É sobre elas silenciarem ou renderem-se a abordagens de conotação sexual e ofensas morais por necessidade de trabalho e sustento, eventualmente por ambição. Por desigual e injusto, não pode ser natural um sistema ancorado na subordinação permanente de umas aos outros.
Mas a força do discurso de Oprah está não apenas em declarar o fim do tempo dos abusadores, expresso na campanha Time’s Up, de apoio legal e financeiro a mulheres que denunciarem abusos nos EUA. A apresentadora foi mais fundo ao exaltar gerações de mulheres (empregadas domésticas, operárias, acadêmicas, engenheiras, médicas, cientistas, atletas, executivas, políticas, militares) que conviveram com o assédio e ficaram no mercado de trabalho, porque tinham filhos para alimentar, casas para sustentar, sonhos a realizar. Elas avançaram em silêncio à espera das vozes da mudança. Chegamos.