Antropóloga Heloísa Buarque de Almeida diz que movimento esbarra em exposição pública, mas ressalta dificuldade de levar casos à Justiça
(Nexo, 15/01/2018 – acesse no site de origem)
Na semana passada, o movimento #MeToo, encabeçado por americanas que denunciam assédio sexual e abuso de poder, foi desafiado publicamente por um grupo de feministas francesas que classifica o movimento de “puritano” e vê, nele, riscos às conquistas da revolução sexual.
O #MeToo e o Time’s Up, movimento de contornos semelhantes, vêm repercutindo há meses e tiveram grande destaque na imprensa, no início da semana, quando mulheres compareceram à cerimônia do Globo de Ouro vestidas de preto. Discursos denunciando violência sexual e desigualdade entre homens e mulheres marcaram a noite de premiações.
Entretanto, dois dias depois, um coletivo de cem mulheres francesas, incluindo a atriz Catherine Deneuve e a escritora Catherine Millet, publicou uma carta aberta no jornal francês Le Monde, opondo-se ao movimento. O texto afirma que, depois do caso Weinstein, houve uma necessária e “legítima tomada de consciência a respeito da violência sexual exercida contra as mulheres”.
“Como mulheres, não nos reconhecemos nesse feminismo que, para além da denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade.”
Carta assinada por cem mulheres francesas
Porém, argumenta, muitos homens foram alvo de uma campanha difamatória sem o direito de se defender – por vezes, “quando seu único erro foi ter tocado o joelho [de uma mulher], tentado roubar um beijo”. A carta-manifesto defende ainda o “direito de importunar, indispensável à liberdade sexual”, e acusa o #MeToo de instalar um “clima de sociedade totalitária”, uma nova “caça às bruxas”.
A carta alcançou grande repercussão. No dia seguinte, outro grupo de francesas, defensoras do #MeToo, publicou uma resposta à carta, afirmando que “as signatárias misturam deliberadamente uma relação de sedução, baseada no respeito e no prazer, com uma violência.” Elas acusam o grupo de cem mulheres de serem “reincidentes na defesa de pedófilos ou de apologias ao estupro”, e de usarem “sua visibilidade midiática para banalizar a violência sexual”.
Uma das cinco autoras do manifesto das cem francesas, Catherine Millet afirmara, em outra ocasião, que lamentava muito não ter sido estuprada, “porque assim poderia dar fé que um estupro também pode ser superado”. Em entrevista ao jornal espanhol El País, a autora do best-seller “A Vida Sexual de Catherine M.” disse não se arrepender da declaração: “É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima. Pode ser vítima desse ato num instante, mas também pode encontrar a capacidade de reagir.”
Em resposta à avalanche de críticas, Catherine Deneuve, no domingo (14), assinou um texto no jornal Libération, apresentando desculpas “às vítimas de atos hediondos”, e apenas a elas.
Em entrevista ao Nexo, a antropóloga e professora da USP Heloisa Buarque de Almeida afirma que a carta das cem francesas confunde puritanismo, ou ser contra o erotismo, com o direito de escolher seus parceiros sexuais. Almeida diz que o direito de defesa dos acusados de fato é fundamental, mas destaca que o #MeToo luta contra pessoas poderosas, e que, se já é difícil fazer acusações de estupro na Justiça, processar alguém por assédio é ainda mais complicado. Leia abaixo os principais pontos da entrevista, concedida por e-mail.
#MeToo e Primeiro Assédio
Em primeiro lugar, acho que o movimento #MeToo, assim como aquele do #meuprimeiroassedio [movimento em que mulheres brasileiras expuseram casos de assédio sexual na internet], tem seus méritos de conseguir expor e falar sobre formas de violência de gênero que estavam escondidas pela vergonha e por uma naturalização do impulso sexual masculino que responsabilizava as mulheres pelas agressões que sofriam. Assim, de início, tem algo que me parece positivo. Houve e há de fato muito assédio no meio empresarial e isso não era falado; agora tem começado a aparecer. No cinema, ainda havia essa suposição de que, para fazer carreira, era preciso, necessariamente, transar com as pessoas certas.
Exposição nominal
A diferença em relação ao #meuprimeiroassedio é que o #MeToo parece ter exposto os agressores nominalmente, e aí há uma dificuldade de ordem, digamos, jurídica: ou você processa alguém, denuncia formalmente, ou a pessoa fica sem a chance de se defender. Poder se defender é algo fundamental e central num Estado de direito: todo mundo tem de ter direito à defesa.
No entanto, é um movimento que começa acusando profissionais muitos poderosos. Ou seja, falar de assédio não é a mesma coisa que uma paquera, e nem de um paquerador insistente, porque entra [em cena] um elemento de poder: o assediador, de algum modo, usa o poder que ele tem (ser chefe, ser um grande executivo) para ameaçar e intimidar a pessoa que ele assedia, para forçar a pessoa a se sentir obrigada a ter relações sexuais. Nota-se assim que a vítima pode ser um homem, e não apenas uma mulher (ainda que seja muito mais comum que os homens “forcem a barra” mais com mulheres do que vice-versa; um homem pode assediar outro homem, uma mulher pode assediar outra mulher etc.).
Choque de gerações
Nesse sentido há um choque [entre defensores e detratores do movimento #MeToo] em parte geracional (embora isso não explique tudo, há diferentes posturas numa mesma geração): ou seja, na verdade, o que temos observado nas pesquisas é que antes não havia um nome para isso. Dizíamos: “este cara é chato, insistente”, “o professor forçou a barra com a aluna”, “o chefe obrigou a funcionária a transar com ele”, mas não tínhamos o termo assédio. E nem usávamos o termos estupro [para caracterizar essas relações] – pois forçar alguém a manter relações é também violência sexual.
Insistência e estupro
Uma coisa em que o texto das atrizes francesas se equivoca é imaginar que o estupro é algo muito violento, e muito distante da insistência de um cara que não sabe ouvir um não, por exemplo – as pesquisas mostram que o estuprador pode ser um conhecido (amigo, colega, parente) insistente que não soube ouvir um não. No caso do Brasil, os dados revelam (pela pesquisa do Ipea, por exemplo) que a maior parte dos estupros acontecem entre pessoas que se conhecem.
Puritanismo e chance de escolha
Acho que há uma confusão também entre o puritanismo de ser contra qualquer forma de sexo, e isso de fato apareceu numa certa corrente feminista norte-americana que era quase contra o sexo (heterossexual) [as chamadas guerras sexuais feministas americanas, que opôs grupos com diferentes visões em relação ao sexo, entre os anos 1970 e 1980]. Mas veja, eu posso gostar muito de sexo, mas só quero fazer com quem eu quiser – isso não é puritanismo, é chance de escolha, é ter direitos, direitos sexuais afirmam isso: direito a ser feliz na cama, a ter uma vida sexual livre de violência, poder transar com quem eu quero e ter orgasmo, por exemplo.
Não quero ser obrigada a transar com quem é meu chefe para garantir meu emprego – é disso que o movimento de Hollywood fala, de homens poderosos que dizem para as mulheres: ou você transa comigo, ou não terá uma carreira no cinema, sem levar em conta se a outra pessoa também sente desejo por ele, supondo que ela terá de aceitar. É esse tipo de pressão implícita ou explícita que configura o assédio. Do meu ponto de vista, isso é muito diferente de uma paquera recíproca. Outra coisa ainda é um cantada deselegante, mas que não configure um medo, uma ameaça.
As moças mais jovens estão mesmo falando de situações em que elas se sentiram ameaçadas, seja profissionalmente, seja de outros modos.
De fato, a carta das francesas retoma o caso das estadunidenses que eram “contra o sexo”, contra qualquer tipo de pornografia, e que aí sim, parecia haver um puritanismo, mas não vejo o movimento #MeToo assim. Embora haja de fato um problema: acusar alguém sem ter chance de se defender. Mas é preciso levar em conta como é difícil acusar formalmente alguém – no caso brasileiro, mesmo diante da violência sexual mais bárbara, o Judiciário tende a absolver o acusado.
O nome das coisas
Normalmente a mulher que acusa é taxada de louca, o estupro – e ainda mais o assédio – é difícil de se comprovar juridicamente. Se nem o estupro é punido no Brasil, na grande maioria das denúncias, imagine o assédio…
Nesse sentido, há um corte geracional importante: há uma forma de nomear as violências sexuais que expõem, que trazem a público o que antes era vivido como algo ruim e traumático, mas que nem sempre tinha um nome. Como há mesmo muita violência contra mulheres que é naturalizada, há um grande mérito em revelar essas coisas. É preciso demonstrar essa desigualdade para poder combatê-la, mudar esse quadro. Para termos uma sociedade igualitária, é necessário que as mulheres possam sim escolher com quem elas vão transar, e não serem obrigadas a manter relações para garantir seu emprego, por exemplo.
Porque [as mulheres] têm hoje mais essa noção de vida sexual como um direito e como uma escolha, inclusive porque essa foi uma longa batalha internacional pelo direitos sexuais e reprodutivos nos últimos 30/40 anos; são as mais jovens que denunciam homens que naturalizavam o comportamento. A carta das francesas mais jovens já rebate a anterior.
Luiza Bandeira