Vitória contra a exclusão
(Folha de S.Paulo, 10/02/2018 – acesse no site de origem)
São evidentes as diferenças biológicas nos corpos de homens e mulheres. Elas se constroem durante a puberdade, em alguns casos depois, mediadas pelos hormônios sexuais.
Os hormônios androgênicos, também chamados de masculinos, são muito mais potentes e transformadores que seus equivalentes femininos. Por isso nossa preocupação no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, com as crianças e os pré-púberes que apresentam questões intensas, persistentes e consistentes de identidade de gênero.
Se podemos bloquear as mudanças físicas, até termos certeza de que se trata mesmo de uma menina ou de um menino, isso evita uma série de constrangimentos, exclusão social, cirurgias e sofrimento.
Com isso, o corpo deixa de seguir o que a biologia determina, para se adequar a quem pertence aquele corpo. Se é menino, que seja menino; se é menina, que seja menina.
A introdução de hormônios específicos para essa mudança final, mas tão importante, só pode ser realizada após os 16 anos de idade.
Com o bloqueio e a hormonioterapia específica, aquela pessoa vai desenvolver seu corpo de acordo com sua realidade psíquica, o que evita sofrimento e facilita a inclusão social. Essas mulheres e homens diferem muito pouco de qualquer homem ou mulher cisgênero (pessoas que não apresentam discrepância entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero).
Para essas pessoas, é óbvio que disputar competição feminina não será problema. Só significará a concretização do que aquele indivíduo vem buscando desde a infância. A questão fica mais complexa quando falamos de adultos que tiveram a puberdade regida pela biologia de seus corpos, com os quais não se identificam, e fazem depois a transição.
Transicionar um corpo masculino para um feminino, e vice-versa, é tarefa árdua e leva tempo. Quando falamos de esporte de alto desempenho, essas mudanças ganham contornos bem mais específicos. Se alguém era um desportista de elite, com treino intenso, musculatura específica, a transição de um gênero para outro pode ser ainda mais demorada.
Quanto tempo? Depende do biótipo, da genética e das ações específicas dos hormônios tomados. Talvez meses sejam necessários para um corpo masculino se tornar feminino, o que implica perda de massa muscular, distribuição de gordura, agressividade etc.
Quando tudo se estabiliza, aquele corpo se torna feminino. E por que não poderia participar de competições femininas?
Lógico que individualidades devem ser consideradas, mas se aquela pessoa se reconhece como mulher, transicionou (operando ou não) para o corpo feminino, cumpriu todas as exigências legais para mudança de nome e sexo civil, ou seja, é uma mulher legalmente, fenotipicamente e psiquicamente, por que não poderia disputar campeonatos femininos?
Se o COI (Comitê Olímpico Internacional) determinou que cumprindo certas exigências, especialmente quanto ao nível hormonal de andrógenos, uma mulher trans pode jogar num time feminino, por que não podemos concordar e assumir que isso é uma vitória contra o preconceito?
É muito fácil afirmar que uma mulher trans teve seu desenvolvimento puberal como homem e que, assim sendo, ela desenvolveu musculatura, coordenação, orientação, sinapses cerebrais e formas de pensar e funcionar seu corpo como homem e não vai ser do dia para noite que perderá tudo isso. Esse raciocínio tem fundamento, é lógico.
O uso constante de hormônios femininos e medicamentos antiandrogênicos, porém, vai mudar todos esses parâmetros, levando-os para padrões femininos.
Quando uma dessas atletas está em quadra, não é um homem que saca, ataca ou defende, mas uma mulher que venceu muitas barreiras para estar ali.
Mudar nosso olhar para reconhecer e aceitar isso revela-se fundamental para que possamos assumir de verdade a diminuição do preconceito e da exclusão.
Alexandre Saadeh é psiquiatra e coordenador do ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP