Ações na Justiça e cobrança de entidades elevam pressão por mudança de posição de militares
(Folha de S.Paulo, 19/02/2018 – acesse no site de origem)
Ana (nome alterado a pedido) estava há mais de dez anos nas Forças Armadas. Não tinha problemas de saúde e ocupava posição equivalente ao tempo de carreira.
Ainda assim, tão logo comunicou que pretendia deixar o gênero masculino registrado nos documentos para ser reconhecida como mulher, foi afastada das funções.
No laudo emitido por uma junta médica, que terminou por aposentá-la compulsoriamente, estava o código CID F640, que aponta “transexualismo”. “Incapaz” para a atividade militar.
“Disseram que não sou a mesma pessoa que fez a prova para entrar. Como, se não mudei meu CPF, nem qualquer dado exigido no exame de admissão?”, questiona.
Desde janeiro, o aumento de ações na Justiça e novos questionamentos de entidades têm elevado a pressão para que as Forças Armadas revejam sua postura em relação a militares transexuais —pessoas que não se identificam com o gênero atribuído ao nascer e buscam alterá-lo.
A polêmica ganhou o debate público com uma recomendação do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro para que Exército, Marinha e Aeronáutica aceitem transexuais em seus quadros. Questionadas, as três entidades informam que a solicitação “está sob análise”.
“Até agora, todos os militares que mudam de sexo são reformados. Mesmo quando são de quadros em que só se permite homens [e não mulheres], sem entrar no mérito de não aceitarem mulheres, não é dada a chance de transferência”, diz Renato Machado, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que abriu inquérito sobre o caso.
A Defensoria Pública da União entrou com ação civil pública para que as Forças Armadas sejam impedidas de afastar transexuais da carreira militar.
A medida ocorreu após o órgão receber uma primeira decisão favorável a uma militar afastada da Marinha depois de mudança de gênero (de homem para mulher). “Mas a Marinha ainda não cumpriu a medida”, diz o defensor federal Thales Treiger.
Em nota, a Marinha diz que o processo de aposentadoria foi suspenso, mas o retorno não ocorreu porque a profissional “permanece em licença médica”, como estava antes de ser reformada.
Além desse caso, segundo o MPF-RJ, ao menos outros sete afastamentos chegaram à Justiça. “Mas há também casos antigos, quando não entravam com ações”, diz o procurador Machado.
NOVA DISPUTA
Militares afastadas e entidades se organizam para cobrar a posição do CFM (Conselho Federal de Medicina) sobre os afastamentos após avaliação médica.
Questionado, o CFM diz que “não se manifesta sobre casos específicos” e que o paciente que se sentir prejudicado durante um atendimento “pode apresentar sua denúncia formal ao conselho regional onde ocorreu o fato”.
Segundo militares ouvidas pela Folha, em alguns casos, a justificativa inicial para o afastamento é o tratamento de saúde o processo de transexualização envolve terapia hormonal e cirurgia.
Foi o que ocorreu com Ana, por exemplo. “Em um primeiro momento, falaram que o afastamento era para me preservar [durante o tratamento]”, diz. Mesmo assim, finalizado o processo, o retorno não aconteceu.
Situação semelhante ocorreu com B., que era oficial superior da Marinha, cargo que deixou em 2008. Na época, relata, decidiu que faria a transição do gênero masculino para o feminino. “Cada pessoa tem um limite. Quando fiz 35 anos, decidi contar para todos [que era transexual].”
A notícia não foi bem recebida: logo foi colocada de “férias”. Em menos de 90 dias, foi aposentada. “Ainda me chamaram para conversar e dizer que a reforma era melhor, porque eu ia sofrer muito preconceito lá dentro.”
Para Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), os afastamentos denotam discriminação. “É preciso ter instrumentos legais contra isso.”
Segundo ela, além de acompanhar os casos referentes à carreira militar, a associação pretende solicitar ao Ministério da Defesa que mulheres trans que ainda têm o gênero masculino nos documentos sejam dispensadas do alistamento obrigatório.
OUTRO LADO
Exército, Marinha e Força Aérea informaram ser contrários a atitudes preconceituosas ou de intolerância dentro das Forças Armadas e afirmam estabelecer “tratamento igualitário”.
Em nota, o Exército diz que preza a “isonomia para todos seus integrantes” e candidatos a ingressar na instituição, “independentemente de orientação ou redesignação sexual”.
Diz ainda observar os direitos previstos na Constituição, “sem se descuidar dos princípios basilares da carreira das armas”. Posição semelhante é apresentada pela Marinha e Aeronáutica. Informam que o ingresso “é facultado a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei e nos regulamentos”.
Sobre o total de afastamentos já registrados de transexuais, a Marinha informou ter tido dois casos por esse motivo, tendo sido um reintegrado por decisão judicial. Já a Força Aérea informou não ter militares transexuais no cadastro, enquanto o Exército disse não ter dados sobre o tema.
Natália Cancian