O que a intervenção no Rio de Janeiro e o moralismo reinante têm a ver com a agenda de reformas no Congresso? Tudo faz parte de uma mesma estratégia
(CartaCapital, 21/02/2018 – acesse no site de origem)
Em meio a um cenário dos mais turbulentos, no qual vemos e sentimos com clareza e temor a marcha acelerada do neoliberalismo econômico em cadência perfeita com conservadorismo moral religioso, se aprofundam as mazelas sofridas pela classe trabalhadora.
Sob o falso pretexto de combate as drogas e à criminalidade e mesmo de uma moralização social, o resultado real é a perseguição, repressão e encarceramento massivo da população preta e pobre.
Como afirmou Dom Mauro Morelli: “Favelas remontam à abolição da escravatura por razões de natureza econômica. Aos ‘libertos’ nada foi oferecido, sua opção foi ocupar morros, alagados e debaixo das pontes. O inchaço das periferias metropolitanas fruto do modelo de desenvolvimento do golpe de 1964. O que virá agora?”
Se por um lado sabemos que a intervenção nos subúrbios e morros do Rio de Janeiro infelizmente não é uma novidade para quem lá vive, por outro não deixa de causar preocupação as motivações obscuras por trás de sua oficialização e todo o empenho político envolvido.
O projeto neoliberal vai, assim, se aprofundando com a escolta de tanques do Exército e camuflado por medidas autoritárias que servem de cortina de fumaça para seus objetivos reais.
A camuflagem não diz respeito apenas à vestimenta militar, mas a todo paramento ideológico que serve para disfarçar as engrenagens que movimentam este projeto maléfico. A este papel sujeitam-se de bom grado lideranças religiosas, algumas vezes também políticas, na afirmação de valores morais e normas de conduta que compõem a roupagem repressiva.
Neste sentido não é espantoso, mas sempre indignante que lideranças religiosas e políticas alinhados com ideias fundamentalistas utilizem sua notoriedade e influência sobre sua comunidade de fé para manifestar posicionamentos políticos absolutamente antagônicos com princípios religiosos que professam.
Marina Silva, por exemplo, enquanto liderança política e publicamente reconhecida como cristã, declarou apoio à intervenção no Rio de Janeiro, rompendo o último e frágil elo com o passado de luta ao lado dos seringueiros pelo meio ambiente e sobrevivência para alinhar-se ao projeto de empresariado no qual ambiente e ser humano significam respectivamente meios de produção e mão de obra.
Nada mais distante do Cristo perseguido e torturado que uma cristã ou cristão defender a tortura, repressão e execução. O Exército busca meios de se proteger de uma possível Comissão da Verdade para que não sejam julgado por “eventuais” crimes futuramente.
Por outro lado, precisamos enaltecer a coragem profética de religiosos, sejam sacerdotes ou fiéis leigos, que desde seus lugares de fé apontam as incoerências e violências de suas lideranças. É o caso do citado Dom Mauro Morelli, entre muitos outros cristãos coerentes com os ensinamentos de seu inspirador.
É o caso de nossos irmãos e irmãs espíritas progressistas que enfrentam o conservadorismo dentro de sua fé a quem, aproveitando o espaço desta coluna, queremos manifestar nossa sintonia e o apoio.
No sábado passado um grupo de espíritas progressistas de todo o Brasil publicou um manifesto em resposta à entrevista coletiva de Divaldo Franco e Haroldo Dutra no congresso de Goiás, na qual expressaram ideias separatistas e equívocos a respeito dos estudos de gênero.
O manifesto faz referência a “princípios básicos da ética espírita, que são os da liberdade de consciência, amor ao próximo, fraternidade, entre outros”, princípios compartilhados por quem professa a fé cristã. Por isso, reproduzimos alguns trechos do manifesto e convidamos para sua leitura na íntegra no site da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
Afirmam na carta que:
• Nenhum médium ou orador pode falar em nome de todos os espíritas ou em nome do espiritismo. Isso é, por si só, desonestidade intelectual;
• Quando um espírita, sobretudo se tem influência sobre a comunidade, manifesta uma ideia ou uma opinião, tem por dever se informar sobre os temas de que está falando, usar referências confiáveis e estar em consonância com a lógica, com a ciência e com o bom senso.
• Deve também, preferencialmente, defender os direitos dos mais fragilizados socialmente, no caso as mulheres, as crianças, os membros da comunidade LGBT+, que são objeto dessas discussões dos estudos de gênero, justamente por estarem vulneráveis a todo tipo de violência e desrespeito em nossa sociedade, além dos negros e negras, as juventudes periféricas e as pessoas com deficiência.
• Não deve alimentar discursos de ódio partidário nem medidas punitivas contra quem quer que seja: nossa bandeira é a da educação, da fraternidade entre todos e da paz, comprometidos com a democracia, a justiça social e a regeneração da sociedade.
É absolutamente ultrajante que um religioso apoie uma intervenção militar, ou qualquer procedimento antidemocrático e injusto, assim como a tortura e pena de morte. Da mesma forma, é inaceitável que se defenda um padrão e norma de conduta absoluta que desconsidera a diversidade humana.
Alguns podem perguntar o que tem a ver o discurso moral dos espíritas no Congresso em Goiás com a intervenção no Rio de Janeiro e as reformas neoliberais que afligem a população mais empobrecida. Respondo: Tudo. O discurso moralizante é mais uma arma no estratagema capitalista e conservador, que fere e mata. Não há inocência naqueles que o empunham.