Os 30 anos do ‘lobby do batom’ na Constituinte
(O Globo, 04/03/2018 – acesse no site de origem)
Dias antes do início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, eleita para produzir a atual Constituição do Brasil, um grupo de mulheres foi visitar as instalações do Congresso Nacional para ver de perto o palco das disputas que estavam apenas por começar. Era fevereiro de 1987. Logo no primeiro passeio, a então deputada constituinte eleita Ana Maria Rattes notou um detalhe bastante revelador sobre o ambiente no qual iria se inserir nos dias seguintes:
— Não havia no plenário do Congresso Nacional inteiro um único banheiro feminino — lembra Ana Maria.
Assim, quando a Carta Magna foi promulgada em outubro de 1988, também as mulheres brasileiras passaram a fincar pé exigindo desde espaço nas discussões até itens básicos, como um simples banheiro. Hoje pode parecer absurdo, mas naqueles dias isso sequer era notado. A legislatura anterior, ainda na ditadura militar, só tinha três deputadas, e a bancada feminina na Constituinte aumentou para 26. Antes, as parlamentares utilizavam exclusivamente os banheiros de seus gabinetes, que ficavam em prédios anexos ao plenário. Só que para a nova bancada era absurda a ideia de tamanho deslocamento só para ir ao banheiro.
Simbolismo
A queixa logo foi levada para o deputado Ulysses Guimarães, que, segundo diferentes relatos, encarou o caráter político do ato, dando todo o respaldo necessário às colegas mulheres. No livro “1988: Segredos da Constituinte”, Sandra Cavalcanti, outra integrante da bancada feminina, disse ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, que o deputado Ulysses Guimarães forneceu a chave do banheiro de seu gabinete para as colegas enquanto ele tomava providências. O mesmo apoio não surgiu em todo o plenário e o machismo daquele ambiente logo se revelou quando a reivindicação das mulheres ficou conhecida.
— Mal ficaram sabendo e começaram os comentários de que “elas postulam igualdade e já querem um banheiro exclusivo” — recorda Ana Maria.
A situação, embora simbólica, foi apenas o primeiro entrave enfrentado pelas mulheres da bancada naqueles dias. Quando as discussões em torno das formulações de direitos começaram, os homens tentavam muitas vezes alijar as deputadas dos grandes temas.
— Quando você olha algumas fotos da época, as mulheres estavam sempre muito espremidas nas discussões — relembra Ester Monteiro, ex-assessora de Ana Maria.
Aos poucos, porém, elas foram ganhando espaço e obtendo vitórias importantes para a garantia de direitos que ajudaram a inserir a mulher brasileira na sociedade e no mercado de trabalho. Assim, com o passar do tempo, elas passaram a ser conhecidas como o “lobby do batom”.
Ana Maria Rattes lembra que foi possível retirar adultério da Constituição, que anteriormente só se referia a mulheres. O homem não era considerado adúltero. Além disso, no novo texto constitucional a licença maternidade foi ampliada de 90 para 120 dias e a licença paternidade foi instituída. Das sugestões apresentadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), órgão do governo federal, 85% foram inseridas no texto final da Constituição.
Jaqueline Pitanguy presidia, à época, o CNDM e lembra que, mesmo antes dos trabalhos iniciarem, foi feita uma mobilização por meio da “Carta aos Constituintes” tanto pela participação das mulheres na elaboração da Constituição como por diversas pautas importantes para o campo feminino. Ela diz que as dificuldades para o progresso das questões não ficavam restritas ao Congresso Nacional. O conselho, que integrava o Ministério da Justiça no período, também sofria interferências do governo.
— Nós lutávamos pelos direitos reprodutivos das mulheres e produzimos um livrinho com métodos contraceptivos. O governo quis proibir a publicação, por pressão da Ígreja Católica, alegando que o DIU (Dispositivo Intrauterino) era abortivo. Mas nós publicamos, fomos em frente — rememora Jaqueline.
Conquistas
Tanto Ana Maria, que agora integra o gabinete da cidadania da Prefeitura de Petrópolis, como Jaqueline, diretora-executiva da ONG Cepia, avaliam o período como uma época de grandes conquistas para as mulheres. Ambas lembram como desde aqueles dias o aborto produzia longas discussões. As duas, porém, olham para os debates atuais preocupadas com o que consideram ser retrocessos.
— Se não houver uma mobilização nacional e uma atenção efetiva, eles concretamente vão retroagir até nos casos de estupro e do aborto de fetos anencéfalos. As mulheres precisam estar muito atentas — afirma Ana Maria.
Jaqueline concorda com as críticas à composição do Congresso atual.
— Para que Brasil eles estão legislando? Estatuto da família, que isso? Família no Brasil sempre foi no plural — afirma ela.
Na sexta-feira, 9 de março, o Tribunal de Justiça do Rio promove o evento “Trinta anos da Carta das Mulheres aos Constituintes.”
— Muitos não sabem o que aconteceu na Assembleia Nacional Constituinte, os avanços e as dificuldades para termos os direitos das mulheres assegurados na Constituição — afirma a juíza Adriana Mello, organizadora do evento.
Juliana Dal Piva