Final de tarde de sexta-feira. Na Rua dos Andradas nº 1137, cerca de sete funcionárias se preparavam para encerrar o expediente. O telefone toca. “Alô? Eu estou ligando porque estou em cárcere privado”, disse, nervosa, a voz feminina com sotaque do interior. Nesse dia, seu marido saiu de casa e trancou a porta – mas esqueceu o celular. Alguns dias antes, tinha deixado o computador. Assim, a vítima conseguiu pesquisar as palavras “proteção para mulheres” e encontrou o contato da Themis, organização focada em gênero, justiça e direitos humanos.
(Sul21, 17/03/2018 – acesse no site de origem)
“Todo dia, pelo menos uma mulher liga pedindo ajuda”, afirma Denise Dora, membro fundadora da Themis. Com a missão de ampliar as condições de acesso à justiça para mulheres, a organização representa um foco de resistências na luta pela igualdade em um país onde uma mulher é vítima de feminicídio a cada duas horas, de acordo com levantamento realizado pelo G1. Somente no Rio Grande do Sul, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de 2017, foram 324 tentativas de feminicídio no Rio Grande do Sul e 83 casos consumados – isso antes da entrada do termo em boletins de ocorrência.
Segundo Denise, para um número de mulheres que nem ousaria contabilizar, a Themis significa socorro e cuidado em um mundo violento. Após a ligação do final da tarde, o grupo se reuniu para montar uma estratégia de apoio à mulher que havia ligado. Combinaram de falar com ela em um outro momento, para conseguir mais informações até que ela fosse levada para um local seguro e, consequentemente, encaminhada para entidades responsáveis na sua cidade.
“Vejo nosso trabalho de muitas formas. Vejo como um prisma, sabe? Dependendo do lado em que a luz bate, gera muitas cores. Nosso trabalho é diverso, é na periferia, no centro, falando e entendendo o que são os direitos na vida real”, define Denise.
Carmen, Cláudia, Virgínia, Ana, Alice, Márcia, Silvia, Fernanda, Patricia. Sem ordem certa, nomes que ajudaram a construir a organização vão aparecendo na memória de Denise. A ONG celebra 25 anos de existência em 2018 – mesmo ano em que a Constituição completa três décadas. Responsáveis pela manutenção da Justiça, as duas têm como intersecção mulheres feministas e ativistas que lutaram pela representatividade.
“Faxina nas leis” e o Lobby do Batom
Em 1987, com a recente abertura política, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) que levou as reivindicações do movimento social à Assembleia Nacional Constituinte. “Cobramos para que a Constituição fosse igual para homem e mulheres, sem distinção”, conta Denise. Ela define o processo como uma “faxina nas leis discriminatórias”.
A Constituição de 1946, representou um retrocesso para as mulheres ao eliminar a expressão “sem distinção de sexo” quando afirma que todos são iguais perante a lei. Isso se manteve nas duas atualizações seguintes do texto.
A campanha “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher!”, do CNDM envolveu mecanismos de articulação e comunicação com segmentos organizados em todos os estados e na Capital Federal. Assim, um grupo de advogadas e cientistas sociais do RS começou a se reunir para compor a elaboração da Carta de Mulheres Brasileiras – que foi entregue em março de 1987 nas mãos do presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães.
Chamado Lobby do Batom, as organizações se mobilizaram em diversos trabalhos de articulação cotidiana para incidir pautas feministas nos debates legislativos. Entre elas, umas das principais que Denise destaca é a descriminalização do aborto. “Chegamos a 30 mil assinaturas através de uma emenda popular”, lembra. No entanto, por resistências duras de deputados, o campo dos direitos sexuais e reprodutivos teve suas pautas deixadas de fora.
O Lobby do Batom foi uma experiência singular de parceria entre um organismo de Estado e o movimento social, cujo saldo foi de 80% das reivindicações aprovadas. As mulheres conquistaram, na Constituinte de 1988, a igualdade jurídica, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio da não discriminação por sexo e raça-etnia, a proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho e o estabelecimento de direitos no campo da anticoncepção.
Dessa união e vontade de mudança, um grupo de cerca de 20 pessoas, entre homens e mulheres de diversas áreas de estudos, se uniram em torno da ideia de criar uma organização que implementasse os princípios de igualdade previstos na Constituição na sociedade. “Decidimos que feminismo não era um tema menor, mas sim, maior”, explica Denise. “Themis vem de um ativismo muito forte, da ideia de que as leis devem ser muito boas e não só proteger, como representar as mulheres”, completa.
“Não podemos ficar esperando que o Estado melhore”
A deusa da justiça, de olhos vendados e com uma balança na mão, que comumente pode ser vista em estátuas perto de prédios ligados ao Judiciário ou como enfeite em escritórios de advogados, tem nome: Themis. Cega, representa a imparcialidade, a lei, a ordem e a proteção.
Enquanto organização, a Themis concentra sua atuação na promoção de uma rede de apoio e enfrentamento. Entre seus trabalhos principais, está o projeto de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs).
O programa firmou-se como uma política pública não estatal em 1993. A promotoras são lideranças comunitárias femininas capacitadas em noções básicas correspondentes ao contexto da região onde estão inseridas – podendo variar de temáticas como o Direito até organizações do Estado. As PLPs atuam voluntariamente em suas comunidades em casos de violação de direitos e na prevenção de violações.
Denise reforça que a Themis tem, de forma clara, que não vai suprir o papel do Estado. Porém, esclarece que o que se pode fazer é produzir propostas de políticas públicas, além de cobrar o cumprimento das leis. “Mas a gente não pode ficar esperando que o Estado melhore”, ironiza. Hoje, a Themis mantém três centros de referência em Porto Alegre, atuando com plantões semanais em áreas como o Morro Santa Tereza, onde se localiza a Vila Cruzeiro e o bairro Restinga. Lá, promotoras realizam trabalho voluntário proporcionando espaços de fala para mulheres vítimas de violência. “O que aprendemos é que a informação é o elemento mais importante. Conversar com as mulheres é um elemento comunitário necessário.”
Vinculado ao programa das PLPs, um aplicativo lançado pela Themis complementa o trabalho. Integrado a uma rede de suporte, ele cadastra cinco pessoas de confiança que podem atender a usuária caso o dispositivo seja disparado. No caso das mulheres que possuem medida protetiva de urgência, seus casos são escolhidos pela juíza da Vara de Violência Doméstica seu nível de exposição. O aplicativo, ainda, pode acionar a polícia militar através de um ‘botão do pânico’ e enviar um aviso às Promotoras Legais Populares (PLPs) que vivem no mesmo bairro.
Outro aplicativo recém-lançado facilita o acesso à informação sobre direitos trabalhistas, especialmente para trabalhadoras domésticas. Chamado Laudelina, o app homenageia Laudelina de Campos Melo, ativista do movimento negro que, em 1936, criou a primeira associação de trabalhadoras domésticas no Brasil. “Ele apresenta várias soluções para apoiar as domésticas, tanto ao resolver dúvidas quanto no encaminhamento de denúncias”, condensa Denise. Para ela, a pauta das domésticas é crucial ao se pensar em direitos das mulheres. “Talvez, seja a categoria mais dispersa, cada uma trabalha por si, geralmente. E é uma maioria gritante de mulheres que, por décadas, não tinham seus direitos reconhecidos.” Ela lembra que, somente em 2013, com a Emenda Constitucional 72, e em 2015, com a Lei Complementar 150, direitos básicos como o limite da jornada de trabalho e o pagamento de horas extras foram regulamentados para as trabalhadoras domésticas.
Denise explica que o projeto ainda está em fase de divulgação, mas que em breve deve ser ampliado. “Queremos levantar dados sobre os impactos da lei com o Ministério Público do Trabalho para entender nosso potencial de resolução.” Para ela, empoderamento econômico é sinônimo de quebra de ciclos de violência. “É a mulher se sentindo dona de si”, define.
“A Themis salvou minha vida”
Denise afirma ouvir essa frase na maioria dos eventos em que participa pela organização. Ela lembra de uma de suas alunas de uma das primeiras capacitações de PLPs, em 1994. “Ela tinha completado só até o terceiro ano do primário. Quando a conheci, dizia que queria estudar. Hoje é pós-graduada”, conta.
Segundo ela, existe muita autonomia de pensamento dentro da organização. “Temos um compromisso ético, mantemos um discurso permanente. Mas sempre nos atualizamos.” Em reuniões semanais, a equipe primária discute a atuação organizacional e pautam propostas. Quinzenalmente, ocorrem os encontros dos grupos de trabalho, focados em diferente áreas. Eles convidam pessoas de fora para discussões que procuram levar a produções de pensamento. “Nunca tem pouca gente”, diz Denise, rindo, ao tentar estabelecer um número médio da totalidade membros que compõem a Themis.
No entanto, a fundadora afirma que há semanas mais difíceis que outras. Essa será uma delas. Na noite de quarta-feira (14), a vereadora e ativista social Marielle Franco foi assassinada, junto com seu motorista Anderson Pedro Gomes, a caminho de casa após um evento que debatia o papel da mulher negra na sociedade. “É um caso horrível. Mataram uma mulher em pleno voo, que foi escolhida a dedo para ser executada”, diz Denise.
Segundo ela, a Themis vinha discutindo formas de estruturar grupos de apoio às mulheres vinculadas aos movimentos sociais. Denise define o cenário como um ambiente “arbitrário” e “desrespeitoso”, quando se concentra na atuação feminina. “É um caso extremo. Mas, se algo de bom pode ser tirado disso, é que motiva a pensar pra frente”, conclui.