Com renda mais baixa, negras e pardas como a vereadora são maioria das mulheres no país
(Folha de S.Paulo, 19/03/2018 – acesse no site de origem)
Com base nas pesquisas nacionais do Datafolha, as mulheres que se auto classificam negras totalizam quase 10% da população adulta do país. Se somadas às que se dizem pardas, chegam a 31%, o que corresponde, segundo projeções sobre dados de 2017 do IBGE a, aproximadamente, 50 milhões de brasileiras. São a maioria das mulheres do país.
A representatividade sociológica “por espelho”, simbolizada na figura da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada na quarta-feira (14) no Rio, não para por aí. Sua origem na Maré reflete-se na renda baixa do segmento —58% delas ganham até dois salários mínimos contra 48% da população.
A vereadora, no entanto, se descolou do grupo em escolaridade. O nível superior de Marielle só é observado em 17% do conjunto. Mulheres negras e pardas apresentam taxas de escolaridade inferior às que se dizem brancas, mas participam mais da população economicamente ativa, especialmente no mercado informal.
Para as eleições deste ano, elas integram um dos conjuntos que mais apoiam Lula (PT) presidente. Na pesquisa de dezembro de 2017, menções ao petista superavam a média em aproximadamente 10 pontos percentuais. Quando o nome do ex-presidente não aparecia na disputa, Marina Silva (REDE) atraía boa parcela do estrato e batia Bolsonaro (PSL).
No mesmo levantamento, a reprovação a Michel Temer (MDB) nesse estrato alcançava 81%, índice que superava em 10 pontos percentuais a média da população em geral e também o segmento de homens que se diziam negros e pardos.
Elas são um dos segmentos sociais que mais identificavam pioras na economia nos últimos meses de 2017.
Mas a comoção em relação à morte de Marielle não se resume à correlação de seu perfil com o emaranhado de dados sociodemográficos. Explica-se também pela personificação de algo raro no cenário político —a vereadora do PSOL representava interesses de seus eleitores.
Mesmo com votação expressiva em áreas ricas do Rio, suas bandeiras de campanha eram claras e atendiam principalmente às demandas das mulheres que espelhava.
Na pesquisa de dezembro do ano passado, por exemplo, nenhum outro segmento da população concordava tanto com a frase “a posse de armas deve ser proibida, pois representa ameaça à vida de outras pessoas”.
Entre as que se autoclassificavam negras e pardas, 67% defendiam a posição, índice que ia a 63% entre mulheres brancas, a 49% entre homens negros/pardos e a 40% entre brancos.
No levantamento feito pelo Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública em julho do ano passado, as mulheres brasileiras de um modo geral eram as que mais tinham medo da violência.
Entre as que se declaram negras e pardas, no entanto, mais do que entre as brancas, destacam-se o pavor pela violência policial, por acusações de crimes que não cometeram e a prisão injusta de seus filhos. Os índices de temor superavam inclusive os observados entre os homens negros e pardos, maiores vítimas dessas ofensas.
Há 20 anos, em rodada de pesquisas qualitativas, o Datafolha concluía que o eleitor brasileiro, de um modo geral, buscava para presidente uma combinação da origem humilde de Lula e a formação acadêmica do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A personificação desses atributos numa mulher negra pode ter ameaçado os que temem uma democracia plena.
INVESTIGAÇÃO
No domingo (18), manifestantes ocuparam um quarteirão da avenida Paulista em ato contra o assassinato.
Marielle foi morta por volta das 21h30 da última quarta-feira (14) no bairro do Estácio, no centro do Rio, após deixar um encontro com mulheres negras. O veículo em que ela estava foi alvejado por tiros disparados de outro carro. O motorista da vereadora, Anderson Gomes, 39, também morreu.
Os criminosos fugiram sem roubar nada, indício de que o crime foi premeditado. Segundo o chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, a morte pode ter sido uma “execução”, mas a investigação segue sob sigilo.
A apuração já concluiu que a munição utilizada no assassinato da vereadora e do motorista foi comprada pela Polícia Federal em 2006 e pertence ao mesmo lote encontrado na maior chacina da história do estado de São Paulo, em 2015. O ataque deixou 17 mortos nas cidades de Barueri e Osasco.
A morte da vereadora ocorreu dois dias antes de a intervenção federal na segurança pública do Rio completar um mês. A medida, inédita, foi anunciada pelo presidente Michel Temer (MDB) em 16 de fevereiro, com o apoio do governador Luiz Fernando Pezão, também do MDB.
Temer nomeou como interventor o general do Exército Walter Braga Netto. Ele, na prática, é o chefe das forças de segurança do estado, como se acumulasse a Secretaria da Segurança Pública e a de Administração Penitenciária, com PM, Civil, bombeiros e agentes carcerários sob o seu comando.
O Rio de Janeiro passa por uma grave crise política e econômica, com reflexos diretos na segurança pública. Desde junho de 2016, o estado está em situação de calamidade pública e conta com o auxílio das Forças Armadas desde setembro do ano passado.
Não há recursos para pagar servidores e para contratar PMs aprovados em concurso. Policiais trabalham com armamento obsoleto e sem combustível para o carro das corporações. Faltam equipamentos como coletes e munição.
A falta de estrutura atinge em cheio o moral da tropa policial e torna os agentes vítimas da criminalidade. Somente no ano passado 134 policiais militares foram assassinados no estado.
Policiais, porém, também estão matando mais. Após uma queda de 2007 a 2013, o número de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial está de volta a patamares anteriores à gestão de José Mariano Beltrame na Secretaria de Segurança (2007-2016). Em 2017, 1.124 pessoas foram mortas pela polícia.
Em meio à crise, a política de Unidades de Polícia Pacificadora ruiu –estudo da PM cita 13 confrontos em áreas com UPP em 2011, contra 1.555 em 2016. Nesse vácuo, o número de confrontos entre grupos criminosos aumentou.
Apesar da escalada de violência no Rio, que atingiu uma taxa de mortes violentas de 40 por 100 mil habitantes no ano passado, há outros estados com patamares ainda piores.
No Atlas da Violência 2017, com dados até 2015, Rio tinha taxa de 30,6 homicídios para cada 100 mil habitantes, contra 58,1 de Sergipe, 52,3 de Alagoas e 46,7 do Ceará, por exemplo.
Mauro Paulino e Alessandro Janoni