Denúncias expõem situações de abusos contra alunas nas universidades
(Catarinas, 31/03/2018 – acesse no site de origem)
A Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) teria sido o cenário de uma série de abusos morais e assédio sexual por parte de um professor do Centro de Ciências Humanas e Educação (Faed). A denúncia veio à tona a partir de um dossiê organizado por estudantes que alegam ter vivido as situações de violência. Ele é composto por um boletim de ocorrência em que uma estudante denuncia o crime de estupro, que teria acontecido no dia 7 de fevereiro após um jantar com o professor, e pelo relato de outras quatro mulheres que afirmam ter sofrido situações de assédio.
O caso foi parar na administração da Udesc no dia 8 de março e motivou manifestação no câmpus. Nas paredes da Faculdade de Educação, dezenas de cartazes denunciam situações de assédio. A instituição encaminhou a denúncia à Procuradoria Geral do Estado (PGE/SC) no dia 21 de março.
De acordo com a nota emitida pela universidade, a PGE/SC analisará o processo que, na sequência, retornará para a Udesc, responsável por “instaurar uma comissão composta por servidores para investigar o caso, em um prazo máximo de 30 dias, que pode ser renovado por mais 30 dias, conforme prevê o estatuto jurídico disciplinar”. No dossiê entregue à universidade, as requerentes se baseiam no Código de Ética da Faed que acentua ser “vedado aos integrantes da comunidade universitária fazer uso de sua posição hierárquica nas relações acadêmicas para práticas de assédio moral e/ou sexual”.
O boletim de ocorrência, nos crimes em que não acontece flagrante, é o meio para início do inquérito pela Polícia Civil, no entanto, como o caso do suposto estupro ocorreu no município de Palhoça e o registro foi feito na 6ª Delegacia de Florianópolis, sua continuidade será dada pela Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DEPCAMI) daquele município. A partir daí é que o denunciado será intimado para prestar depoimento.
A estudante que denuncia o crime de estupro optou por se manifestar por intermédio da profissional que a representa. Daniela Félix, advogada da denunciante, afirma que o professor teria se aproveitado de uma relação de confiança entre ele e a aluna. “Ele exercia uma relação de poder sobre a vítima e se aproveitou disso. Independente da existência de violência ou não, não houve consenso. Era uma prática do professor ter uma relação mais próxima das estudantes, pois teriam pontos de debates acadêmicos em que estavam alinhados, mas a vítima não imaginava que ele, alguém próximo aos seus familiares, pudesse atentar contra sua liberdade sexual e utilizar das circunstâncias para violar o seu corpo sem o seu consentimento”, alega.
Em um dos relatos que consta no dossiê, uma estudante descreve que as situações de assédio aconteciam durante as orientações individuais ocorridas uma vez por semana. “Ele não me orientava em relação ao projeto ou vida acadêmica, somente especulava e dava palpites sobre minha vida pessoal, elogiava meu corpo e me abraçava muito. O fato de elogiar meu corpo – bunda, seios e até a vagina – e me abraçar se tornaram mais frequentes, até passar a tentar me beijar”, conta.
Diante das denúncias, o professor optou se pronunciar através do advogado, Hédio Silva Júnior, que confirmou ter tido acesso às acusações que promovem o processo na universidade. Ele destaca que o crime de estupro do qual seu cliente é acusado não motivará tramitação dentro da Udesc, já que o fato teria ocorrido fora do espaço acadêmico.
O advogado de defesa diz ainda conhecer o teor do boletim de ocorrência com a acusação de crime de estupro, mas que seu cliente ainda não foi intimado para depor. Hédio considera as provas muito frágeis e incongruentes e afirma que o professor tem plena certeza de que o caso será esclarecido nas esferas jurídica e acadêmica, confirmando a sua inocência.
Considerando a fase inicial do processo, quando ainda não houve oportunidade para a ampla defesa legal do docente e a conclusão dos ritos que precedem a sentença, o defensor critica o que chama de “linchamento moral” do seu cliente nas redes sociais. “Apesar do linchamento que o meu cliente vem sofrendo antes mesmo do início das investigações, nós não temos dúvidas que comprovaremos, nas esferas jurídicas e acadêmicas, a inocência dele”, declara.
Novas denúncias
Na última semana, outras seis mulheres também apresentaram denúncia. Uma delas foi Verônica*. A estudante conta que já teria ouvido rumores sobre o comportamento do professor antes que ele se tornasse seu orientador.
“Lembro bem das colegas falando na cantina que não gostavam do jeito dele, que ele ficava olhando pros seios das meninas. Comigo mesmo aconteceu de me parar no corredor pra perguntar se eu malhava e dizer que eu tinha um corpo bonito”, recorda. Como estava com dificuldades no curso, Verônica resolveu aceitar a ajuda que o próprio docente teria oferecido. Na primeira reunião, na sala do núcleo, diz ter sido surpreendida com um abraço longo. “Ele ficou me abraçando por uns oito, dez minutos. Falou que era pra eu perceber o quanto de intimidade eu poderia ter com ele e que eu podia contar com ele sempre que precisasse”.
De acordo com Verônica*, os abraços ficaram ainda mais intensos nos encontros seguintes. “Ele ficava passando a mão nas minhas costas por baixo da roupa, falou que eu era uma mulher que despertava muito desejo nele. Disse que os outros professores não me enxergavam como ele e que podia fazer de mim uma pessoa bem sucedida”, rememora.
Com o passar do tempo, Verônica diz que o assédio ficou mais explícito. “Ele começou a marcar os encontros de orientação bem cedo, às vezes às sete horas, quando tinha pouca gente lá. Pra entrar na sala dele precisava passar por uma sala grande que era escura neste horário. Ele me convidava pra ir a um motel e me perguntava se podia ir à minha casa”, conta.
“Ele dizia que eu tinha sido feita pra obedecer”
A estudante diz ter perdido as forças ao longo do tempo, que chegava às orientações como se estivesse doente. “Eu chorava por não ter feito as coisas que ele me pedia, por me sentir mal com a situação. Ele dizia que eu tinha sido feita pra obedecer.” Verônica conta que passou a faltar às reuniões com o orientador ou comparecer acompanhada sempre que possível. “Uma vez, depois que eu faltei a muitos encontros, ele me fez ficar em pé olhando fixo pra ele. Ficou me xingando e se eu me virasse ou mexesse o ombro ele dizia que eu tinha que aprender a falar com ele, não desviar o olhar. Ele também falava que tinha vários processos mas que ‘nenhum deu em nada’”, relata a estudante.
Por fim, ela afirma que decidiu desistir da disciplina. “Fui desanimando e vi que não tinha a ajuda que eu esperava. Ele me procurava, eu não respondia”.
“Se não houvesse a primeira denúncia, Verônica assegura que nunca teria revelado o que passou. “Eu chorei muitas vezes. Quando saía de lá [dos encontros com o professor] eu me sentia um lixo. Eu achava que era só comigo, me sentia culpada. As pessoas me perguntaram por que eu não gritei ou não corri, mas ele estava no comando da situação”.
Quando viu a campanha #MeuProfessorAbusador, promovida pelas alunas da Udesc nas redes sociais em apoio às primeiras denunciantes, Verônica logo a associou ao ex-orientador. Contou a uma colega e pediu ajuda para fazer a denúncia à ouvidoria da universidade e também à polícia. Ela alega que ainda tem medo, mas diz que se sente mais forte e espera que haja punição. “Isso serviu pra gente reconhecer outros tipos de abuso, não só o sexual, mas o psicológico”.
O assédio nas universidades
Casos de assédio no meio universitário não são propriamente uma novidade. Em agosto do ano passado, o Ministério Público Federal em Rio Verde (MPF/GO) denunciou um professor do curso Medicina Veterinária da Universidade Federal de Goiás (UFG), da unidade Jataí, por assédio sexual e estupro de vulnerável. De acordo com a denúncia, o docente, valendo-se de sua condição de professor-orientador, após reiteradas abordagens e assédios via aplicativo de conversa, teria estuprado a aluna na madrugada de 4 de dezembro de 2016, enquanto ela dormia, em um apartamento localizado em Goiânia, para onde alguns alunos foram após a participação em congresso ocorrido na capital.
O caso chegou até a professora e coordenadora do projeto de extensão Práticas em educação, gênero, sexualidade e subjetividades (PEGSS/UFG), Tatiana Machiavelli Carmo Souza, por intermédio do Diretor da Regional da unidade, em fevereiro de 2017. Um e-mail anônimo teria sido enviado com a denúncia. “Naquele período, eu havia desenvolvido uma pesquisa sobre violência contra mulheres na universidade e estávamos construindo um grupo para discutir o tema. Acolhemos as estudantes que estavam muito vulneráveis e elas foram encaminhadas para os serviços de saúde e atendimento psicológico. Somente em maio optaram pela denúncia”, relata.
Estudantes e professoras promoveram manifestações reivindicando apuração do caso e o afastamento do professor. “Após diversas tentativas, a universidade decidiu pela abertura do processo administrativo que ainda não foi concluído. A celeridade desse processo segue como uma das reivindicações do movimento. Até janeiro deste ano, o professor seguia no quadro da universidade, ainda que fora de suas atividades, quando a reitoria decidiu pelo seu afastamento” conta.
Além do processo administrativo na universidade e do boletim de ocorrência que gerou inquérito em âmbito estadual, as estudantes apresentaram denúncia ao Ministério Público Federal que denunciou o docente e instaurou inquérito para investigar práticas de assédio organizacional pela UFG/Jataí.
“A medida supõe que a condição hierárquica constituída no ambiente universitário e a falta de programas e serviços de prevenção e enfrentamento à violência propiciam as condições para o assédio.”
Situações de assédio também provocaram protesto de estudantes de Jornalismo, Relações Públicas, Rádio e TV da UNESP Bauru/SP no último 8 de março. Ao final da fala do orador na cerimônia de formatura, as estudantes levantaram cartazes denunciando casos de assédio na instituição. O ato foi organizado pelo Coletivo UNESP Bauru Sem Assédio e tinha como alvo um professor renomado da instituição, conhecido por assediar alunos e alunas. A universidade se pronunciou em nota oficial e disse que o caso está em processo de apuração e que durante um ano, apenas um caso de assédio foi registrado.
As mulheres que compõem o Coletivo afirmaram que dentro da universidade o assédio é muito naturalizado e isso acaba inibindo as alunas de procurar ajuda ou denunciar. “O medo ou a vergonha acabam sendo mais fortes, além de existir a preocupação com uma possível retaliação do professor”, afirmam. Para elas, os canais de denúncias da universidade não são divulgados da maneira que deveriam e na maioria das vezes o que acontece é uma aluna que foi assediada conversar com uma amiga, que alerta outra e assim tentam se proteger do professor assediador.
A cultura patriarcal refletida na universidade
Situações de assédio nas universidades precisam ser compreendidas no contexto das estruturas hierarquizadas, característica do sistema cultural que costumamos chamar de patriarcado.
Em Blumenau/SC, relatos de estudantes da Universidade Regional de Blumenau (Furb) provocaram debates dentro e fora do campus nos últimos dois anos. Segundo a ativista Manoella Back, do coletivo Casa da Mãe Joana, o ambiente universitário favorece as situações de abuso porque professores fazem uso do poder e do conhecimento que detêm para assediar alunas. No entanto, é comum que ocorra o abafamento dos fatos. “Sempre há casos de professores abusadores que são abafados. É comum que aconteça a troca do professor de campus ou de unidade, o que só desloca o problema e não resolve. Muitas meninas desistem de denunciar os casos ao colegiado ou à coordenação do curso por medo”, conta.
As relações de poder entre homens e mulheres, alunas e professores, constituem também a gênese da violência moral na perspectiva do gênero. Esse contexto foi essencial para justificar a criação do Grupo de Estudos Direito e Gênero junto à Universidade do Vale do Itajaí (Univali), campus Biguaçu. “Algumas alunas nos procuravam relatando que professores as convidavam para sair e não aceitavam ‘não’ como resposta, ou incomodadas com piadas de cunho machista que ouviam em sala de aula. Fomos à coordenação do curso expor essa situação e, a partir daí, passamos a orientar as alunas para uma consciência de que o assédio não é adequado, que elas não tinham culpa e não deveriam ter vergonha”, relata Vivia Degann dos Santos, professora do curso de Direito da Univali de Biguaçu/SC.
Ela observa que o assédio dentro dos muros da universidade muitas vezes se dá de forma sutil, mas ganha dimensões com as relações pelas redes sociais. “Às vezes o assédio não transparece em sala de aula mas toma outros contornos nos meios virtuais. O uso da hierarquia profissional acaba respingando nesse alcance que se tem das pessoas pela internet. Se antes acontecia dentro da universidade, hoje ela se amplia através das redes sociais”.
O problema é institucional e não pode ser tratado no nível do caso a caso. Para Vivian, a conscientização da comunidade acadêmica sobre direitos e responsabilidades tem que partir da própria administração da universidade. Professores devem se comportar de forma adequada e apoiar iniciativas.
“A principal ação é não aceitar que se reproduza no ambiente universitário, que deve ser um espaço de reflexão, a ideia de que a vítima é culpada, que ela provoca o assédio. A universidade deve ser o ambiente para se repensar esse tipo de situação”.
Para Tatiana, coordenadora do PEGSS/UFG, é preciso inserir a temática de gênero e étnico-racial em toda a universidade. “Hoje, disponibilizamos disciplinas de caráter livre que trazem esses temas em todos os cursos. Mas é preciso ir além, com a criação de políticas universitárias de prevenção e enfrentamento à violência. Precisamos de mecanismos mais claros que punam qualquer tipo de assédio, seja moral ou sexual. E também de serviços de acolhimento e apoio, articulados com a rede municipal como a Delegacia da Mulher, o Centro de triagem de DSTs, o CRAS”, aponta.
Tatiana defende que essa ações ganham reforço com o protagonismo das mulheres na universidade. “É essencial a disposição, tanto das alunas como das professoras, de fazer o enfrentamento e provocar mudanças. A universidade faz parte da sociedade e essa experiência vem desmascarar as violências explícitas e implícitas presentes no meio acadêmico. Muitas alunas vêm sofrendo assédio e violência ao longo dos anos, achando que isso faz parte da relação universitária. No caso que acompanhei aqui em Goiás, o estupro acabou sendo um desfecho terrível de uma série de violências vivenciadas no cotidiano e que adquiriram aspecto de normalidade”, finaliza.
*Nome fictício.