Como e por que a rotina de hostilidade — com estupros, prostituição e violências — contra o grupo social acontece em unidades de encarceramento.
(HuffPost Brasil, 07/05/2018 – acesse no site de origem)
A primeira vez em que Fernanda Falcão foi presa, tinha 18 anos. Ela recebeu a acusação de portar R$ 32 e 18 pedras de crack por ter se recusado a pagar a taxa de R$ 50 para os policiais que faziam a segurança daquela região do bairro de Boa Vista, em Recife, em que Fernanda e outras travestis se prostituíam. Ela se negou a dar o dinheiro porque uma policial que a revistou em uma abordagem, ao verificar sua genitália, a espancou e cortou seu cabelo.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, ela diz ter obrigado suas colegas, de maneira agressiva e impositiva, a também não pagar os policiais. Só ao chegar ao Centro de Triagem (Cotel) Abreu e Lima que Fernanda descobriu qual era a acusação atribuída a ela, a qual até hoje ela contesta.
“No sistema prisional, eu tive muitas dificuldades por não ter família. Meu cabelo foi cortado várias vezes”, conta. “Quando descobriram que eu já era enfermeira, pois já tinha o técnico concluído e estava no ensino superior, me deram a oportunidade de trabalhar dentro do sistema. Mas, antes disso, eu já tinha sido estuprada”. Junto de outras duas travestis, Fernanda foi colocada em uma cela com cem homens e foi violentada pelo líder todos os dias do mês em que lá ficou.
“Passei um bom tempo sendo estuprada até um agente, depois de ter visto meu desespero no momento em que eu saí da cela para lavar as roupas do chaveiro, fez a proposta de que, se eu continuasse a lavar os coturnos dele, poderia ficar fora da cela”. Foi assim, diz Fernanda, que ela conseguiu sair do espaço em que não tinha nenhuma segurança. “Isso não me deixou feliz, porque minhas amigas continuavam lá dentro”, conta.
A história da enfermeira de 26 anos entra em total colisão com a Resolução Conjunta 1 do CNCD/LGBT (Conselho Nacional de Combate à Discriminação). Publicado em 2014, o documento orienta unidades penitenciárias masculinas a terem alas para travestis e gays, o encaminhamento de transexuais masculinos e femininos a unidades prisionais femininas e o reconhecimento do nome social, entre outros pontos.
“No sistema prisional, eu tive muitas dificuldades por não ter família. Meu cabelo foi cortado várias vezes.”
Embasada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em convenções internacionais que resguardam a manutenção dos direitos de presos e leis federais do Brasil de prevenção e combate à tortura, a resolução é vista com bons olhos por duas ativistas do movimento LGBT entrevistadas pelo HuffPost: Marina Reidel, Diretora de Promoção de Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, e Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
Em fevereiro deste ano, a resolução chegou a ser citada por um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, para determinar o envio de duas prisioneiras travestis a um “estabelecimento prisional compatível com a orientação sexual”, como reporta o Conjur. Antes da transferência, uma delas alegou estar “sofrendo todo o tipo de influências psicológicas e corporais” dentro do espaço que dividia com 31 homens.
Entretanto, uma resolução não é o suficiente e tanto Reidel quanto Simpson defendem que é importante pensar em políticas públicas. A resolução, explica a coordenadora, não tem força de lei, e embora tenha trazido avanços e provocado debates, tem um caminho a ser percorrido para melhorar o cenário.
“A gente precisa levar em conta que, no Brasil todo, temos apenas 101 espaços de alas e celas LGBT, e temos um total de 1.500 unidades prisionais”, diz. “Todos os documentos, quando são elaborados, têm uma época. Cabe agora ao CNCD/LGBT rever e pensar de que forma podemos nos articular para fazer alterações, levando-se em conta que a conjuntura mudou em quatro anos.”
Simpson analisa que o documento serve de instrumento para reivindicação de direitos e tem tido esse efeito. Nos últimos anos, ela conta, a violência física e psicológica praticada por companheiros de cela e agentes do Estado contra prisioneiros LGBT, com algumas exceções, diminuiu. Por outro lado, ela lamenta a inexistência de dados objetivos que façam um panorama realista da situação.
“As políticas devem vir junto para que a gente possa resgatar essa população e colocá-la dentro de um sistema democrático.”
Keila Simpson
Fernanda já foi enviada a um dos presídios com uma ala destinada para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Ela já passou pelo sistema carcerário três vezes e, em uma delas, pelo pavilhão E, do presídio de Igarassu, cuja construção Fernanda ajudou a organizar. Ele foi pago com verba própria das detentas, conta — e o dinheiro veio em boa parte de programas feitos por eles, gays e travestis.
A enfermeira percorreu todo o sistema prisional de Pernambuco por causa de sua qualificação. Mediante necessidade, como em rebeliões, ela era enviada para ajudar. Fazer serviços domésticos e trabalhar dentro do sistema a ajudou a estar menos exposta às violências que viveu antes.
A presidente da Antra diz que a experiência de Fernanda tende a ser frequente: se não prestam serviços ou não estão em alas específicas, é possível que LGBTs sejam alocados no que é chamado em algumas cadeias de “seguros”, que são complexos de celas para presos jurados de morte ou que devem ser afastados de facções rivais. Não diferente do cenário fora das prisões, dentro delas os LGBT também encontram violências e violações de direitos.
“As alas têm esse papel específico, de resguardar a segurança dos LGBT quando o Estado os detém, mas isso não quer dizer que dentro delas não haja tensões, que a polícia não haja com truculência quando necessário, que uma ou outra pessoa tenha os ânimos mais acirrados”, pondera Simpson.
Ela propõe que o caminho adequado para melhorar o quadro, para além de uma resolução, é criar ações e políticas públicas. Iniciativas de reinserção social, por meio da educação e oportunidades no mercado de trabalho, devem fazer parte do pacote de ações.
“As políticas devem vir junto para que a gente possa resgatar essa população e colocá-la dentro de um sistema democrático, que possa cuidar de sua vida sem cometer delitos. E, se cometê-los, com consciência de que deve pagar por eles.”
“A população LGBT não cometeu o crime por ser LGBT, mas em alguns locais do Brasil há esse olhar.”
Marina Reidel
A discussão, segundo Simpson, ainda é bastante embrionária — tem chão pela frente para essas propostas do movimento LGBT serem normalizadas no Brasil. E as ações efetivas, por sua vez, não devem vir apenas pela via da religião.
“A gente tem notado que qualquer denominação religiosa tem acesso ao presídio com uma facilidade que os movimentos sociais não têm. É preciso unificar essa forma de dar garantia a todas as instituições que querem fazer ações dentro de unidades prisionais”, diz. “Não é só por Jesus que você terá liberdade e salvação. Respeito quem pensa assim, mas quero pensar em outras formas — a educação formal, o trabalho, a vida social, a independência financeira”, completa.
Segundo Reidel, ainda é frequente prisioneiros LGBT dividir celas com criminosos sexuais. “A população LGBT não cometeu o crime por ser LGBT, mas em alguns locais do Brasil há esse olhar”, diz.
Fernanda ainda relata que, mesmo em liberdade, voltou a ser presa pelos mesmos policiais. Quando fora do encarceramento, ela fez uma denúncia no Centro Estadual de Combate à Homofobia; depois disso, os policiais conseguiram seu endereço e abordaram em casa, em busca de dinheiro. Quando ela não tinha, voltou a ser acusada de portar crack — e voltou para a prisão também.
Hoje, há três anos fora do sistema prisional, ela está absolvida de todos os processos por causa de testemunhos que a ajudaram. Ela se dedica à profissão de enfermeira e ao ativismo dos movimentos LGBT e negro. “Eu não merecia ter passado pelas prisões, ter sofrido tudo o que sofri e ver o sofrimento de tantas outras pessoas. Até que eu estava em uma posição confortável por causa da minha formação. Ainda sinto uma dor por ter passado por aquilo tudo”.
Caio Delcolli