Abusos merecem esforço de investigação equivalente ao destinado à corrupção
(Folha de S.Paulo, 13/05/2018 – acesse no site de origem)
O mais prestigioso prêmio jornalístico internacional, o Pulitzer, foi dividido entre o jornal The New York Times e a revista The New Yorker por série de reportagens sobre denúncias de assédio sexual e estupro contra nomes importantes do cinema e da mídia.
As reportagens premiadas levaram a uma série de denúncias que, ao fim de 2017, deram no movimento #MeToo (#EuTambém), que estimulou mulheres em todo o mundo a relatar episódios de abuso em seu ambiente de trabalho.
Em março de 2017, acusação de assédio envolvendo o ator José Mayer foi revelada na Folha, mas não foi suficiente para tornar o tema uma das prioridades jornalísticas do ano.
O furo veio de fora da Redação. Coube ao blog #AgoraÉQueSãoElas publicar texto da figurinista Susllem Tonani, em que acusou o ator de assédio sexual dentro de camarim da TV Globo. Como consequência, mulheres se mobilizaram no movimento Mexeu com uma, mexeu com todas. Afastado o ator, a mobilização perdeu força.
No Brasil, o assédio sexual é definido no artigo 216-A do Código Penal: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena — detenção de um a dois anos”.
Como explica Luiza Nagib Eluf, autora do livro “Dos Crimes de Costumes e Assédio Sexual”, aqui, a conduta de assediar “não inclui assobios, galanteios, gracejos ou ataques sexuais físicos. O assédio não pressupõe contatos físicos, limita-se ao constrangimento praticado por um superior hierárquico ou alguém que tenha ascendência sobre a vítima”.
Tenho insistido nas críticas internas que produzo para a Redação a respeito da importância de a Folha priorizar investigações sobre assédio nas mais variadas áreas.
É justo registrar que em abril a Folha noticiou, com exclusividade, que o jogador de futebol Ruan Petrick Aguiar de Carvalho, 19, registrou boletim de ocorrência em que acusava o coordenador das categorias de base do Santos, Ricardo Marco Crivelli, de abusar sexualmente dele quando tinha 11 anos e desejava vaga nas categorias de base do clube. Ele foi afastado do clube e nega as acusações.
Por vezes, imaginava que o jornal entraria firme na investigação de acusações envolvendo brasileiros como o bailarino Marcelo Gomes, que se demitiu do American Ballet, ou o fotógrafo de moda André Passos. Decepcionei-me.
O jornal saiu-se melhor nas reportagens envolvendo abusos de diplomatas brasileiros com postos em organismos da ONU, sem que, no entanto, partisse de investigações próprias.
Com as sucessivas revelações de assédio mundo afora, a Folha optou por publicar traduções de jornais estrangeiros e por fazer registros discretos.
No Brasil, a melhor reportagem coube ao Fantástico, da TV Globo, que relatou dezenas de acusações contra o técnico da seleção brasileira de ginástica, Fernando de Carvalho Lopes. Em raro exemplo brasileiro de investigação longa e detalhada, a repórter Joana de Assis obteve relatos impressionantes das vítimas dele.
A pauta pode ter sido inspirada no caso do médico Larry Nassar, da equipe de ginastas dos EUA, acusado de abuso por mais de 200 mulheres e já condenado em duas ações.
Nos últimos dias, o tema voltou às manchetes no exterior com a condenação por agressão sexual do comediante Bill Cosby e a expulsão dele e do cineasta Roman Polanski (que estuprou uma garota de 13 anos e é acusado por outras) da Academia do Oscar, além do cancelamento do Nobel da Literatura depois da crise causada por acusações de assédio contra o escritor Jean-Claude Arnault, casado com um poeta integrante da instituição.
Não teria espaço aqui para citar tantos casos. As acusações de assédio sexual se espalham por diferentes países, ambientadas no mundo do entretenimento, da cultura, do esporte, da diplomacia, da mídia, da moda, das universidades, das empresas.
É um tipo de apuração extremamente complicado e difícil, que leva tempo, exige abordagem adequada e precisa ser relatado com cuidado. Há milhares de vítimas que podem estar dispostas a falar.
Falta a decisão editorial de começar a investigar, com força-tarefa semelhante à que se dedica para apurar crimes de corrupção, por exemplo.
Não se trata de revelar fofocas sobre a intimidade de pessoas famosas, mas de desnudar uma prática aceita por tempo de mais numa sociedade de notório viés machista.
A Folha precisa abandonar a posição de repassador passivo de informações e tornar-se, de fato, agente de investigações cuidadosas e embasadas, no Brasil. Não há questão comportamental mais abrangente, urgente e necessária a ser investigada do que as múltiplas denúncias de assédio.
Paula Cesarino Costa é Jornalista, é ombudsman do jornal desde abril de 2016. Está na Folha desde 1987.