Em meio à nova onda feminista, presidente apresenta medidas ambiciosas para corrigir as disparidades e faz um ‘mea culpa’ pelo machismo: “Eu também cometi erros”
(El País, 24/05/2018 – acesse no site de origem)
As demandas pela igualdade entre homens e mulheres entraram com tudo na agenda chilena. A nova onda feminista, que se soma à luta pela igualdade em diversas partes do mundo, mobiliza as estudantes de cerca de 30 universidades do país. As universitárias e as jovens são a ponta de lança de um movimento transversal que começa a provocar mudanças no funcionamento do Estado, das universidades, dos meios de comunicação e de uma longa lista de instituições, como o próprio Governo. Nesta quarta-feira, uma semana depois da mobilização feminista protagonizada por milhares de mulheres – 25.000, segundo dados oficiais, ou 150.000 só em Santiago, segundo as organizadoras –, o Governo direitista de Sebastián Piñera apresentou uma ambiciosa lista de medidas para corrigir as disparidades de gênero, o que inclui uma mudança na Constituição.
“Hoje chegou o momento de assumir nossa história e nossa realidade, com suas luzes e sombras, para poder marcar um antes e um depois na forma como tratamos as nossas mulheres”, afirmou o mandatário numa cerimônia no palácio de La Moneda, cercado por mulheres de diferentes colorações políticas, como a presidente da Câmara de Deputados, Maya Fernández, neta do presidente Salvador Allende. “Todos cometemos erros em nossas famílias, em nossos trabalhos, em nosso viver cotidiano e em nossa sociedade. Esses erros afetaram nossas esposas, nossas filhas, nossas mães, nossas colegas e nossas companheiras, e com estes erros não fomos justos com as mulheres do nosso país. Eu também cometi erros, e farei todos os esforços para corrigir essas condutas”, afirmou Piñera, fazendo um mea culpa pelo machismo.
O presidente anunciou que seu Governo impulsionará uma reforma constitucional para estabelecer como dever do Estado promover e garantir a plena igualdade de direitos, deveres e dignidade entre o homem e a mulher, e evitar toda forma de abuso ou discriminação de gênero. Nos próximos dias, o Executivo pedirá ao Parlamento que tramite com máxima urgência dois projetos de lei apresentados no primeiro Governo de Piñera (2010-2014): um para punir a violência entre namorados, e outro que estabelece a plena igualdade de direitos entre homens e mulheres para administrar o patrimônio da sociedade conjugal e seus bens próprios, algo em que a legislação atual ainda favorece os maridos.
Numa tentativa de atender à demanda por uma educação não sexista, uma das bandeiras levantadas pelas universitárias, Piñera anunciou que o Ministério da Educação elaborará um plano de assistência técnica e acompanhamento em escolas primárias, secundárias e de ensino superior, “para promover e assegurar a inclusão em seus regulamentos dos mais altos padrões em matéria de convivência, protocolos de prevenção de abusos, assédios, discriminações e mal entendidos, e fixar procedimentos eficazes de denúncia, investigação e sanção dessas condutas”.
Entre cerca de 20 medidas que se traduziriam em 10 novas leis, Piñera anunciou algumas especialmente desejadas pelas mulheres: uma reforma no sistema de saúde privada para acabar com “as diferenças injustificadas de preços de planos de saúde, que prejudicam as mulheres, e muito especialmente aquelas em idade fértil”, como reiterou o presidente na noite desta quarta-feira em rede nacional de rádio e televisão.
Sem maioria no Parlamento e empenhado em buscar grandes consensos com a oposição para poder governar, Piñera incluiu em sua proposta de gênero algumas das iniciativas apresentadas por sua antecessora socialista Michelle Bachelet (2014-2018), como o projeto de lei sobre o direito da mulher a viver uma vida livre de violência. Procurará, por sua vez, que o exercício da igualdade de gênero comece pelo próprio Estado, com “exigentes disposições em matéria de prevenção, denúncia, investigação e sanção de todo tipo de abusos, assédios sexuais ou trabalhistas, discriminações e maus tratos”.
“Fazem bem as mulheres em lutar por uma causa justa”, observou Piñera, que tomou posse do atual mandato em 11 de março. O mandatário tem 55% de aprovação popular, mas já enfrentou complicações internas por causa da atuação de alguns de seus ministros. O da Educação, por exemplo, em meio às passeatas feministas, falou em “pequenas humilhações ou discriminações” contra a mulher, o que gerou polêmica e levou a ministra da Mulher, Isabel Plá, a tomar distância de seu colega de Gabinete. Diferentemente do que ocorreu com relação ao movimento estudantil no seu primeiro mandato, (2010-2014), desta vez Piñera tenta compreender a tempo uma demanda popular transversal, cuja força parece superar inclusive as mobilizações pela educação e as reivindicações por pensões dignas, que explodiram nos últimos sete anos.
Em um país como o Chile, com uma disparidade salarial de 31,7% contra as mulheres, o Governo buscará promover uma maior participação da mulher em cargos de alta responsabilidade – tanto no setor público como no privado e no mundo acadêmico – e “fomentar uma maior participação de mulheres em carreiras científicas e tecnológicas e em programas de pós-graduação, o que sem dúvida se traduzirá em melhores remunerações e contribuirá para reduzir as disparidades salariais”.
Embora as propostas da Piñera tenham sido bem avaliadas por diferentes grupos políticos, as estudantes feministas anunciaram uma nova manifestação no próximo dia 6. “As mudanças legislativas, como a alteração na Constituição que o presidente propõe, são simbólicas e necessárias, mas não suficientes. O movimento vai continuar se radicalizando, e neste momento não vamos baixar a guarda”, indicou na tarde desta quarta-feira Amanda Mitrovic, da Coordenadoria Feminista Universitária.
Rocío Montes