“Essa semana foi bem difícil para mim”, disse Márcia Eurico no início da apresentação de sua tese de doutorado nessa sexta-feira (25), na PUC São Paulo. A semana da assistente social e professora não foi só difícil devido ao nervosismo pela tese, mas também porque seu nome estava estampado em cartazes e notícias sobre a ocupação da universidade por estudantes que pediam sua contratação definitiva como professora – e também maior presença de professores negros, através da hashtag #MárciaFica.
(UOL, 26/05/2018 – acesse no site de origem)
Não bastasse a ocupação e a tese, a crise da gasolina fez com que duas das professoras que comporiam a banca de Márcia quase não conseguissem chegar a São Paulo. Detalhe: eram as duas convidadas, uma do Rio de Janeiro e a outra de Salvador, ambas negras. As demais membras da banca, todas da PUC, eram brancas. Márcia contou que quase não dormiu na véspera do grande dia.
“Preta, preta, pretinha”
Mas as professoras chegaram e Márcia pôde defender sua tese: “Preta, Preta, Pretinha: O Racismo Institucional no Cotidiano de Crianças e Adolescentes Negras (os) Acolhidos (as)”, que trata da violência racial contra crianças que vivem em orfanatos. “O título é uma provocação, mas também é pessoal. É uma música que canto para minha filha”, disse ela na apresentação. Maísa, de cinco anos, estava no fundo da sala assistindo. Familiares, amigos, outras assistentes sociais e alunos também compunham a plateia, meio branca, meio negra.
Essa composição igualitária entre brancos e negros é o que Márcia gostaria de ver na universidade e o que os alunos pedem através da ocupação e do movimento #MárciaFica. Mas, apesar de ter seu nome amplamente divulgado na ocupação dos estudantes, Márcia não esperava ficar na PUC. Ela assumiu como professora substituta com contrato de quatro meses e sabia que sairia.
“Eu tenho uma trajetória de pesquisa na área da questão racial, muitos alunos me conheciam por esse debate. E aí viram na minha entrada uma oportunidade de reacender uma discussão que vem sendo feita desde o ano passado”, explica ela, que tem acompanhado as negociações dos estudantes com a PUC-SP.
“O debate racial é que fica”
As demandas dos alunos eram para que fosse criada uma disciplina de “Gênero, Raça e Etnia” e a contratação de Márcia, além da criação de cotas para inclusão de novos professores negros. “O movimento é mais do que a minha permanência. Quer dizer que ficarei em todos os profissionais comprometidos com o debate racial na PUC. O debate racial é que fica”, diz ela.
A professora lembra que nos últimos anos foram criadas cotas para estudantes negros, sem se pensar no corpo de professores. “A presença maior dos estudantes negros é que abriu um canal para discutir. ‘Olha, eu consigo chegar na universidade hoje, mas ao chegar lá eu não consigo pautar a questão racial e não consigo me reconhecer”, explica.
Durante a sua graduação, no entanto, diz que foi diferente. “Eu fiz serviço social numa universidade particular na periferia de São Paulo, então existe uma presença maior da população com menor poder aquisitivo”. Mas perguntada sobre os professores, lembra que só havia uma negra na época.
A realidade fez Márcia pensar sobre racismo
É que, apesar de ser negra, filha e irmã de negros, Márcia só viu o debate de raça ganhar força em sua vida depois da faculdade, em 2005. “Quando comecei a atuar, percebi que tinha uma lacuna na minha formação. Por conta da escravidão, a população negra continua majoritariamente nas piores condições de vida. Os bolsões de pobreza são os espaços onde se inserem as crianças negras. As crianças marginalizadas são negras. Então a realidade concreta me fez buscar o aprofundamento concreto sobre o racismo, para poder intervir nessa realidade com meu trabalho”.
Três anos depois, iniciou o mestrado tendo como tema o racismo no trabalho de assistentes sociais.
Além do trabalho acadêmico e das aulas, Márcia também sempre atuou como assistente social, profissão que escolheu porque possibilita “intervir na realidade, ter uma ação ético-política e pela defesa de direitos”. Ela também é professora da Faculdade Paulista de Serviço Social, onde diz que metade dos professores são negros.
Márcia vai ficar
Já na PUC, Márcia é minoria, mas acredita que não seja um racismo deliberado e sim institucionalizado. “Não é que a gente não tenha professor negro qualificado, mas esse profissional é pouco contratado.”
Um cenário que, parece, vai começar a mudar. A PUC atendeu às demandas dos estudantes e anunciou que Márcia terá a partir do próximo semestre uma disciplina optativa aberta para todos os cursos da instituição. Além disso, foi prometido o desenvolvimento de políticas afirmativas.
A semana que foi difícil, no fim terminou bem para Márcia. Além de toda a movimentação e mudanças na PUC, ela teve seu doutorado aplaudido de pé, com direito a lágrimas nos olhos de colegas assistentes sociais que assistiam. Agora Márcia Eurico é doutora, e vai ficar.
Helena Bertho