Especialista no atendimento de mulheres negras, psicóloga Maria Jesus Moura fala sobre a importância de se levar em conta o racismo sofrido por suas pacientes e não negá-lo
(El País, 13/07/2018 – acesse no site de origem)
Quando a psicóloga Maria Jesus Moura, ou somente Jesus Moura como é chamada, decidiu estudar os espaços de atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica, descobriu que algo importante estava faltando. “Encontrei a subnotificação das demandas raciais, e inclusive a desconsideração dos profissionais em notificar”, conta. Ou seja, o tipo de violência de gênero, e principalmente de raça, não eram levados em conta. “Em muitos relatos estava escrito ‘agrediu a mulher com palavras’. Quais palavras?”, pergunta ela. “Se você não registra o que foi dito, não tem como perceber e identificar o quanto isso é caro, doloroso e violento para essa mulher. A desconsideração do ‘o quê’ também é um tipo de violência”.
Para Jesus, esse silêncio em relação às demandas dessas mulheres está na raiz do racismo vivido ainda hoje no Brasil. “Vivemos um racismo institucional. Seja nos serviços públicos, como os centros de referências de atendimento, nas delegacias, ou nas instituições privadas, não há a definição de uma pauta de especificidade”, diz. “Isso cria uma invisibilidade às demandas especificas”. O resultado está estampado no cotidiano das estatísticas brasileiras: As mulheres negras são mais assassinadas que as brancas (71% a mais, segundo o Atlas da Violência 2018), concluem em menor quantidade o ensino superior (somente 10% terminam a faculdade, enquanto 23,5% das mulheres brancas o fazem, segundo o IBGE) e estão na base da pirâmide quando o assunto é salário – ganham, em média, 40% a menos que um homem branco, enquanto a média das mulheres é de 30% a menos, segundo o IBGE.
Por consequência, essas mulheres trazem para o divã demandas muito específicas. E esse é o foco do trabalho de Jesus, dentro e fora do consultório. Mestre em psicologia com foco social pela Universidade Federal de Pernambuco, ela é especialista no atendimento de mulheres negras – mas não só. Recebeu a reportagem em seu consultório, na zona norte do Recife.
Pergunta. Claro que cada indivíduo tem suas particularidades. Mas é possível dizer quais são as diferenças no atendimento de uma mulher negra para uma mulher branca?
Resposta. Boa parte do que as mulheres me trazem é algum sofrimento diante de relações sociais. Ou afetivas ou no trabalho, onde a autoestima é um dos elementos mais frequentes. Há uma baixa autoestima e um sentimento de inferioridade, de menos valia. O psicanalista e escritor Jurandir Freire Costa diz que o racismo tem a tendência de destruir a identidade da pessoa negra. É uma estratégia para destruir, criar pessoas controladas, sem autonomia, que não consigam ter um discernimento.
P. Criar criados.
R. Criar criados. Ou a escravidão psíquica. Mesmo no caso das pessoas empoderadas, que vêm da militância. Isso acontece com as feministas também. Tem uma coisa que amarra, porque ficou na história. E às vezes é o ponto cego, a pessoa não vê. Eu já atendi militantes do movimento negro e convivi com um grupo de militantes cujas fragilidades da autoestima em algum momento aparecem de forma fortíssima.
P. Mas existe um problema de autoestima nas mulheres de maneira geral, não?
R. Existe, porque as mulheres em geral ou estão sofrendo por uma pressão social na sua constituição do machismo e ou do racismo.
P. Então no caso das mulheres negras o problema de autoestima pode ser acumulativo.
R. Exatamente. Machismo e racismo. E se ela for lésbica então… Tem pessoas que são extremamente empoderadas, de não deixar ninguém passar por cima, mas adoecem, têm crise do pânico, se deprimem. Não é uma coisa só de ficar com medo, se fechar e não enfrentar. Não, elas enfrentam. Mas é com sofrimento. E aí o elo de ligação é esse: essas mulheres se questionam como elas conseguiram ser chefes hoje? Como chegaram nesse lugar? Por mais que eu tenha almejado, investido, por mais que eu tenha consciência de que eu sou capaz, eu não consigo ainda assim viver nesse lugar. É um processo que vem alinhavado por dentro.
P. Não significa que, porque chegou a uma posição desejada, a questão está resolvida.
R. Não. Esse registro na psique não sai com o conhecimento. Não é assim: “Ah, o racismo é isso? Então eu estou livre dele”. O registro é mais profundo. Por exemplo, aqui no consultório não temos recepcionista. Na semana passada, eu estava na sala da recepção e a cliente de uma colega, que atende aqui também, me perguntou se ela pagava a mim ou à psicóloga dela. Eu entendi. Disse “Olha, aqui nós não temos recepcionista. Então acho melhor você pagar diretamente à sua psicóloga”. Outra pessoa diria “por que ela perguntou a mim?”. Veja, eu não estava sentada atrás do balcão da recepção. Eu não estava em nenhum lugar específico que pudesse ser confundido com recepcionista. Mas ao mesmo tempo ela captou a minha imagem….
P. Como é o trabalho com as crianças com esse recorte de raça?
R. Hoje eu não atendo mais criança, mas já atendi muitas e trabalho com orientação e supervisão. E aí o trabalho é primeiro a construção do profissional conseguir entender porque isso é importante, e depois trazer isso para a família. Mas com muito tato, porque não se sabe como as pessoas veem essa questão. Por exemplo, eu pergunto “por que você acha que falam isso do teu filho na escola? Por que aquela criança não quis pegar na mão do teu filho?”. Eu não posso dizer diretamente que isso acontece porque ela é negra. Eu preciso sensibilizar esse pai ou essa mãe a entender que existe essa possibilidade. E aí explicar como isso funciona e como eles podem lidar com isso. Mas, se a demanda já chega nominada, já é mais fácil. Eu sempre oriento a não mudar de escola, porque o bullying foi criado para denominar as diversas violências que as crianças sofrem na escola, e uma delas é o racismo. Esse elemento é importante para a criança, porque ela precisa se empoderar para enfrentar o racismo na escola. Não adianta ela sair de lá. A negritude dela não muda quando ela sai da escola. Ela leva para onde for. E os pais precisam entender isso. Não adianta dizer que a escola é racista. Se é racista, o que podemos fazer? De que maneira podemos contribuir? Para qual escola você vai levar seu filho, que vai ser uma escola totalmente anti-racista, anti-homofóbica? Não existe.
P. Porque a sociedade não é.
R. Sim, está em todo o canto. O que a gente precisa é fazer o nosso trabalho com as pessoas para que elas possam perceber isso e entender que não é a cor da pele que faz com que elas sejam piores que os outros. As próprias crianças já estão fazendo isso.
P. De que maneira?
R. Muitas crianças hoje já dizem, por exemplo, que não vão desenhar a mãe com tal lápis de cor porque essa não é a cor da mãe delas. Isso é fruto de um trabalho que vem de casa. E aí a escola, de alguma forma, ou se molda, ou violenta a criança. E esse questionamento, infelizmente, vem através da militância.
P. Por que infelizmente?
R. Porque todas as pessoas negras deveriam ter acesso a esse entendimento. Porque no Brasil, para brigar contra o racismo, você precisa fazer um investimento intelectual. Você tem que ler, estudar, pesquisar. E aí você começa a compreender. Não é uma coisa natural, de você crescer já sabendo dessas coisas e ir se preparando cada vez mais para enfrentar isso na vida. Não, a gente cresce escondendo essas questões. Desde a maternidade, quando entram no seu quarto, olham para a sua filha e dizem assim “e esse narizinho? Como vai ser? Vai colocar um pregador?” E aí você ri, diz que vai botar um pregador, e as vezes bota mesmo.
P. Pregador? No nariz?
R. Sim. Para afilar o nariz. Ou dizem para a mãe ficar fazendo assim [e coloca o polegar e o indicador no nariz, em forma de pinça e faz movimento de cima para baixo]. “Faz assim que isso vai afilando o nariz do seu bebê”. A criança acabou de nascer….
P. As pessoas já chegam com essa consciência de racismo institucionalizado aqui no seu consultório?
R. Quando esse sentimento do racismo começa a ser falado conscientemente, já é um passo. Mas a maioria chega sem conseguir dizer. E inclusive sem conseguir identificar que aquele sofrimento que ela tem, tem uma relação com o racismo. Esse é o problema. Nomear o racismo não é uma coisa simples num país que sempre camuflou o racismo, sempre tentou esconder o racismo nas relações sociais. As pessoas negras foram educadas, muitas vezes por suas mães e pais negros, a repetir aquilo que eles aprenderam. Ou seja, a criar uma relação saudável no silêncio. Para essa relação ser saudável, é preciso silenciar qualquer coisa que fale da minha insatisfação, do meu tratamento pela minha cor da pele e pelo meu cabelo. Essa coisa de eu ter que alisar o meu cabelo para não ser ridicularizada… O alisamento necessariamente não é a saída de um gosto, existe uma coisa por trás que move isso. Aquele cabelo crespo não é um cabelo que é aceito com tanta naturalidade. Talvez hoje a gente viva uma cultura do empoderamento de mulheres principalmente, em relação aos seus cabelos crespos, e crianças desde já crescendo assim. Mas as crianças cresciam querendo alisar o cabelo.
P. Você passou por isso?
R. Eu vi recentemente no YouTube um vídeo que parecia que fazia parte de uma história minha. Quando eu entrei na adolescência, meu maior desejo era alisar o cabelo e fazer franja. Eu vivia em um grupo social branco, na escola onde eu estudava eu era a única negra. E a franja era tudo o que que queria, porque as minhas amigas tinham franja. E na primeira oportunidade que eu tive, eu alisei o cabelo e cortei a franja. Foi ridículo, foi horrível… Não aconteceu comigo o que aconteceu com a menina do YouTube, que foi fazer um tutorial de como fazer franja, e foi um desastre. Quando ela cortava, o cabelo levantava, não ficava com franja. E ela não entendia, e ia cortando, cortando, até restar quase um dedo de cabelo só. O sofrimento dela era por não entender por que não deu certo. Por que nos outros tutoriais que ela viu davam certo? O cabelo então acaba sendo uma grande marca na questão da relação social, porque como eu já disse, para você não romper o silêncio e manter as relações saudáveis você tem que negar a cor, o cabelo, as características, roupas, adereços, acessórios. Chegar com turbante não é para todo mundo, porque o turbante tem uma marca religiosa. Então acaba que já fazem uma leitura da mulher negra a partir dos adereços, da vestimenta, de um conjunto de coisas.
P. Sobre o turbante. Foi o símbolo de uma discussão no ano passado sobre apropriação cultural. O que acha disso?
R. O turbante tem uma representatividade nessa luta e nessa resistência negra no nosso país. Não se usava turbante até um tempo atrás, a não ser pelas mulheres de terreiro. Quando o turbante vem embelezar um corpo, ele vem com essa carga política cultural. Essa discussão parte desse lugar. Por que quando a gente usa isso, isso passa a ser de todo mundo? Por que todo mundo pode agora? Antes, ninguém podia, porque existia uma certa resistência e proibição. Aí quando se quebra essa barreira e entra nesse aspecto de “agora eu posso”, todo mundo quer usar. Eu, particularmente, acho que é importante, como tudo na militância negra, a gente demarcar espaços. Mas eu não acho interessante esse embate que existe por alguém que não é negro estar usando turbante, porque ele não produz o que a gente tanto quer na militância, que é a preservação dos direitos e a igualdade. Para uma mulher branca usar um turbante, ela precisa saber que esse turbante tem uma representação. Não é qualquer adereço.