Audiência Pública sobre descriminalização do aborto acontece dias 3 e 6 de agosto no STF, em Brasília.
(Brasil de Fato, 31/07/2018 – acesse no site de origem)
Em meio às repercussões da aprovação, na Câmara dos Deputados da Argentina, sobre o direito das mulheres recorrerem ao aborto legal, seguro e gratuito até a 14ª semana de gestação, acontece no Brasil, nestes dias 3 e 6 de agosto, a audiência pública para discutir a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ação foi ajuizada, no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442 e trouxe à tona o debate sobre aborto no país, reacendendo o assunto na sociedade. Para o movimento feminista, é uma oportunidade de refletir sobre a problemática com a seriedade necessária e de dialogar com a população a este respeito, por isso vai realizar o Festival pela Vida das Mulheres, com o lema Nem morta, nem presa por aborto, pela vida das mulheres!, no Museu da República, em Brasília, durante ocorrem as discussões no STF.
De um lado, campanhas difamatórias e ameaças de morte são lançadas por aqueles que são contra a descriminalização do aborto no Brasil, e são dirigidas contra Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e uma das articuladoras da ADPF, juntamente com o Psol. Por outro, parte do movimento feminista diz ser insuficiente pautar apenas a descriminalização do aborto, sendo necessária a legalização para que as mulheres mais empobrecidas e negras possam ter acesso a essa política, via garantia do Estado Brasileiro.
Para entender melhor tal contexto, e o que circula em torno do tema, o Brasil de Fato entrevistou Melania Maria Ramos de Amorim, Professora e pesquisadora de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande e da pós-graduação em Saúde Integral do IMIP – Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueiras de Recife-PE – e será umas das expositoras durante a audiência no STF.
BDF –Como você avalia a legislação brasileira quanto ao aborto?
Aqui no Brasil nós vivemos sob uma legislação que proíbe o aborto, salvo dois excludentes de licitude, quando não há outra forma de salvar a vida da gestante ou quando a gestação é decorrente de estupro. Outro caso, mas que não é considerado como aborto, e sim como antecipação do parto ou interrupção de gravidez, é quando ocorre o caso de anencefalia (o bebê não possui cérebro). Salvo essas circunstâncias, o aborto é tido como um crime contra a vida, onde você incorre nos artigos 124 e 126 do nosso código penal em que se pune tanto a mulher, como quem a ajuda a praticar o aborto.
E o que é que ocorre com essa legislação proibitiva? Se entende que esse código penal é bem antigo, nosso código penal é de 1940, e ele foi proposto com o objetivo de reduzir os abortos. E isto absolutamente não é efetivo porque as estimativas são de que ocorram entre 500 mil a um milhão de abortos por ano no Brasil. A pesquisa nacional de aborto, que é a pesquisa mais confiável feita por amostragem em domicílios e utilizando a técnica diurna (uma metodologia mais apurada, mais precisa), estima que até chegar aos 40 anos, uma a cada cinco brasileiras terá provocado pelo menos um aborto. Ou seja, uma a cada cinco mulheres, todo mundo conhece 5 mulheres.
De acordo com esta pesquisa, realizada em 2016, em 2015 mais de 500 mil mulheres praticaram aborto, então são cifras muito elevadas e nós vivemos numa legislação proibitiva. As evidências demonstram também que os países com legislação proibitiva praticam tantos, ou até mais abortos que os países com legislação mais permissiva. Ou seja, uma legislação proibitiva não é efetiva em reduzir o número de abortos e o grande problema é que os países onde a legislação é proibitiva como aqui no Brasil, as mulheres irão recorrer a soluções perigosas. E quais são as mulheres que vão recorrer a soluções inseguras? São exatamente as mulheres mais pobres, de escolaridade mais baixa. Principalmente as mais pobres e as negras, que têm o risco de morrer em complicações com aborto 3 (três) vezes mais do que as brancas. Essas soluções perigosas são soluções tóxicas que podem ser ingeridas ou colocadas nas genitais, o uso de instrumentos perfurocortantes e outros métodos que acarretam sequelas e complicações inadmissíveis, causando hemorragia, infecção, choque séptico e complicações de longo prazo e morte.
A estimativa é de que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil. Em 2015 houve 211 mortes por aborto, em 2016, 203 mortes por aborto no Brasil. E para cada morte por aborto a gente tem 25 casos de mulheres que quase morrem, então em 2016 cerca de cinco mil mulheres quase morreram, ou seja, tiveram complicações muito graves em decorrência do aborto.
Então o problema é que as mulheres não deixam de abortar porque a legislação é proibitiva, as mulheres que têm melhores condições socioeconômicas e maior nível de escolaridade, elas sabem como recorrer a soluções seguras, embora clandestinas, elas procuram sobretudo soluções medicamentosas à base de misoprostol ou procuram clínicas clandestinas e caras, que apesar de serem clandestinas, têm recursos técnicos para oferecer um aborto seguro, enquanto as mulheres mais pobres e isso é fato, “pobres e negras”, procuram soluções inseguras e acabam por encontrar complicações, sofrimento morte e dor.
BDF – Na maior parte do mundo interromper gravidez no seu início é um procedimento legal, regulamentado pelo sistema de saúde. Na sua opinião porque no Brasil o assunto é um tabu? Ou uma questão penal?
A criminalização do aborto não é efetiva para redução do número de abortos, isto é demonstrado, em estudos, em todas as sociedades do mundo. Então, os países onde mais se faz aborto são justamente os países que tem legislação punitiva. E ela não é justa porque pune exatamente as mulheres mais pobres e ela traz consequências extremamente danosas para a saúde das mulheres, então não se trata de uma simples dicotomia se “você é contra ou a favor do aborto?”, a questão é saber se você é a favor de condenar e punir as mulheres que abortam, se você acha que as mulheres merecem ser presas, se as mulheres merecem morrer, ou se você é a favor de descriminalizar para garantir maior justiça, maior equidade e evitar essas disparidades absurdas, reduzir a mortalidade materna e também reduzir o número de abortos.
Essas desigualdades na mortalidade materna elas são absurdas entre os países que legalizaram e os países onde o aborto é criminalizado. Então é uma situação de grave injustiça, de crueldade psíquica, que colocam as mulheres em um verdadeiro estado de tortura psicológica, uma vez que elas são forçadas a procurar soluções inseguras para a prática do aborto. O risco de morrer por aborto provocado nos países menos desenvolvidos e com aborto ilegal, chega a ser 100 a 1000 vezes maior que nos países desenvolvidos com aborto legal.
Punir a mulher que aborta com a cadeia, prejudica a mulher e a sociedade, não reduz os abortos e não é justo. Por isso nossa luta entranhada pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação para evitar todos esses prejuízos que colocam a mulher em situação de desigualdade, que constitui um gravíssimo desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos.
Ironicamente, os grupos que se dizem “pró-vida” estão tecendo ameaças, inclusive ameaça de vida a Débora Diniz, que é da ANIS – Instituto de Bioética, que deu entrada nesta ação junto ao Supremo Tribunal Federal. É muito irônico e eu aproveito esta entrevista para prestar toda solidariedade a professora Débora Diniz.
BDF- Você será uma das expositoras da audiência pública do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto até 12ª semana de gestação enquanto um direito das mulheres. O que representa esta Arguição de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442)? Qual a discussão que vocês esperam fazer para convencer a Corte?
A ADPF 442 foi uma ação proposta pela Anis– Instituto de Bioética em parceria com o PSOL, como uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, porque, realmente, a gente acha que isso fere os preceitos fundamentais da Constituição de 1988, ferindo a dignidade e a inviolabilidade da vida, direitos fundamentais das mulheres.
A ideia é que o Ministério Público Federal reveja, à luz da constituição brasileira, os artigos 124 e 126 do código penal e descriminalize o aborto até 12 semanas, e com isto a gente coloque a vida das mulheres em segurança, a par do que a aconteceu em vários países do mundo, em que se observa que com essa descriminalização, rapidamente, cai as mortes maternas por aborto, cai a mortalidade materna, de uma forma geral, e isto não aumenta o número de abortos. Pelo contrário, inicialmente, a gente vai ter um aumento do número de registro, o que não é um aumento do número de abortos, mas a médio e longo prazo, a tendência é haver uma redução no número de aborto.
É em respeito pelos direitos das mulheres, por uma maternidade livre, voluntária e prazerosa; pelo direito de não morrer, nem ter complicações graves, pelo direito de não ser torturada, porque o que se vê é uma via crucis dessas mulheres que procuram abortos e soluções nessas clinicas clandestinas de alta periculosidade.
Várias entidades, inclusive a FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – entendem que a decisão de praticar o aborto só cabe a mulher, e cabe as/os ginecologistas e obstetras apoiá-la em sua decisão. Não deveria ser crime e por isso que nós apoiamos a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Essa é uma medida, que com certeza é justa porque vai permitir que todas as mulheres tenham acesso ao serviço de saúde, aborto seguro dentro da instituição de saúde pública, evitando as enormes disparidades que existem no momento. Obstetrícia vem da palavra latina obstare – é o verbo que significa está ao lado. Então nós nos colocamos integralmente agora ao lado das mulheres e é com esta intenção que eu estou indo à audiência pública do Supremo Tribunal Federal, me colocar mais uma vez ao lado das mulheres, ao lado da defesa integral dos direitos sexuais e reprodutivos e a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.
Os homens engravidam as mulheres, muitas vezes, contra sua própria vontade. Eles abortam com as palavras, não são processados, não são presos, não são excomungados e as mulheres com melhores condições e escolaridade, elas abortam com segurança, embora de forma clandestina. Então a situação é terrivelmente injusta e funciona para muitas, como uma grave violação dos direitos e da dignidade das mulheres.
BDF- Na Argentina, as mulheres conseguiram aprovar, na Câmara Federal, o direito de recorrerem ao aborto até 14ª semana de gestação. Nos países em que o aborto foi legalizado, o número de procedimentos diminuiu, a que isso se deve?
Isto ocorre devido as mulheres passarem a ser acolhidas pelo sistema de saúde, algumas delas até desistem de abortar porque se identifica com as mulheres que estão em situação de vulnerabilidade, se garante a proteção social a uma gravidez indesejada, elas passam a ter acesso a todas as opções, tira-se a mulher da situação de vulnerabilidade em que ela se encontra. E principalmente, vai-se oferecer métodos contraceptivos e orientações pós-aborto, evitando-se assim o aborto de repetição, o aborto recorrente que é responsável por 40%, ou mais, dos abortos em qualquer país.
Então quando o aborto passa a ser legalizado, a mulher passa a receber dentro do sistema de saúde todas as orientações. Orientação contraceptiva para não engravidar, para não voltar a engravidar e daí evitar novos abortos. Então, em decorrência da legalização do aborto, vai haver não só redução das mortes maternas, mas também redução no próprio número de abortos.
Além do mais, a gente tem que ver que com a legalização, o sistema de saúde passa a ter todo interesse de evitar novos abortos. Enquanto que num sistema de clandestinidade, o provedor de abortos clandestinos, ele não tem nenhum interesse de evitar novos abortos. O “aborteiro”, por assim dizer, esse é o negócio dele, ele mercadeja com o aborto.
Sávia Cássia e Heloisa de Sousa; Edição: Paula Adissi