Especialista em direito penal que assina a ADPF 442, Luciana Boiteux afirma em entrevista ao HuffPost Brasil que probir não impede que mulheres pratiquem abortos.
(HuffPost Brasil, 01/08/2018 – acesse no site de origem)
“A criminalização do aborto não é compatível com a Constituição de 1988”, afirma a advogada e professora de direito penal Luciana Boiteux, uma das 4 autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que pede a descriminalização da interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas 12 primeiras semanas. A ação foi protocolada no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo Psol e pelo Anis – Instituto de Bioética em março do ano passado e será debatida em audiência pública nos dias 3 e 6 de agosto, por determinação da relatora, a ministra Rosa Weber.
Para além de ferir direitos e preceitos fundamentais da Constituição, como a dignidade humana e a liberdade, na visão de Boiteux, a criminalização do aborto envolve uma questão urgente: a vida das mulheres. “O fato de [o aborto] ser proibido tem reflexos nos dados de saúde das mulheres, especialmente das mulheres pobres e das mulheres negras. Para mim, é urgente não só por princípio, por ser uma pauta feminista, ou por ser um compromisso com a liberdade das mulheres. Mas por ser uma pauta de saúde pública”, disse Boiteux, que também é pré-candidata a deputada federal pelo PSol, em entrevista ao HuffPost Brasil.
A reportagem também conversou com a doutora em microbiologia Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, que é contra a descriminalização da interrupção da gravidez. Leia a entrevista aqui.
Embora a própria criminalização dificulte a produção de dados confiáveis sobre o tamanho do problema no Brasil, algumas constatações já foram feitas. As duas edições da Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela Universidade de Brasília e pelo Anis – Instituto de Bioética em 2010 e 2016, revelaram que, aos 40 anos de idade, uma em cada cinco mulheres já terá realizado um aborto no Brasil. O levantamento também demonstra que cerca de metade das mulheres que fez um aborto ilegal no País precisou ser internada. “Mulheres morrem em decorrência dessa ilegalidade do aborto”, completa Boiteux.
O fato de [o aborto] ser proibido tem reflexos nos dados de saúde das mulheres, especialmente das mulheres pobres e das mulheres negras.
Por isso, a jurista afirma que a luta do movimento feminista não é apenas pela descriminalização do aborto, mas também pela legalização do procedimento. “A descriminalização num conceito jurídico vai definir a retirada daquela conduta do direito penal, portanto ela não vai ser mais passível de punição. A legalização é o processo que decorre da descriminalização; o processo para garantir, na lei, políticas que permitam a realização do aborto no sistema público de saúde”, diz. A regulamentação é necessária para que as mulheres não só deixem de serem presas, mas também possam ter acesso ao aborto seguro e a toda a assistência necessária, explica a advogada.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, Boiteux contou quais foram os fatores que fizeram que o Psol e a Anis entrassem com a ação no ano passado, explicou quais são os argumentos utilizados no pedido e quais as expectativas para essa discussão no Supremo.
Leia a entrevista completa:
HuffPost Brasil: Por que é preciso descriminalizar e legalizar o aborto no Brasil?
Luciana Boiteux: Para mim hoje existe uma urgência, que acho que é o move as mulheres, que é a morte de mulheres. O fato de [o aborto] ser proibido tem reflexos nos dados de saúde das mulheres, especialmente das mulheres pobres e das mulheres negras. Para mim [a descriminalização] é urgente não só por princípio, por ser uma pauta feminista, por ser um compromisso com a liberdade das mulheres, mas por ser uma pauta de saúde pública. Mulheres morrem em decorrência dessa ilegalidade do aborto.
O que fez o Psol e a Anis entrarem com a ADPF no Supremo Tribunal Federal em março do ano passado? A Anis procurou o partido ou foi o contrário?
A Anis procurou o partido num momento político muito interessante. Para mim, essa ação no Supremo é fruto da Primavera Feminista, é fruto da mobilização do movimento de mulheres no geral. O Psol tem no seu programa a pauta da legalização do aborto desde a sua fundação em 2007. No primeiro congresso nacional do Psol tínhamos ali a pauta da legalização do aborto como uma pauta partidária, fruto da luta das mulheres que construíram o partido. Então porque somente em 2017 entrar com a ação, né? Na verdade, o partido vem participando desse debate, as mulheres do partido sempre estiveram organizadas nos atos dos movimentos sociais, mas até então era uma luta de militância de rua e de tensionamento no Congresso Nacional. A ADPF é concretizada a partir da Primavera Feminista e do movimento Mulheres na Política, que em 2016 foi muito marcante. No Psol especialmente, nós tivemos uma eleição de 11 vereadoras, foi um recorde para gente no partido. A campanha em vários estados teve essa pegada feminista muito forte. Isso mobilizou o partido. Aí, quando a Anis nos procura, esse movimento feminista no partido estava em ebulição e a gente aprova isso no Encontro de Mulheres no final de 2016, logo depois das eleições. O protocolo foi em março por termos feito algumas conversas com outros movimentos, tentando ampliar o alcance.
A criminalização do aborto não é compatível com a Constituição de 1988, que reconhece os direitos das mulheres e fala de cidadania e liberdade.
E quais são os fundamentos utilizados na ação para defender a descriminalização e a legalização do aborto?
No sentido de compreender o que os próprios ministros já têm utilizado em casos anteriores, é a partir de uma leitura da Constituição. Então tem a ver com a Constituição de 1988, esse marco democrático que é posterior ao Código Penal, de 1940. Um marco democrático que fala da igualdade entre homens e mulheres, que fala em cidadania e dignidade das mulheres. Então o argumento é que, essencialmente, do ponto de vista jurídico, a criminalização do aborto não é compatível com a Constituição de 1988, que reconhece os direitos das mulheres e fala de cidadania e liberdade. O texto também traz como argumentação informações de outros países que também tiveram esse debate nas suas Supremas Cortes. Temos o famoso Roe v. Wade nos Estados Unidos, também tivemos na Cidade do México um debate constitucional, embora em uma situação um pouco diferente. A gente está provocando o Supremo a agir numa perspectiva democrática, no papel do tribunal em uma democracia, de interpretar uma lei penal de acordo com a Constituição. O conceito é o de proteção da mulher. A criminalização ignora os direitos da mulher, o corpo da mulher, ainda tem uma visão antiquada sobre a mulher. A peça também traz os argumentos da realidade social. A gente mostrou quem está morrendo por causa dos abortos inseguros. A Débora Diniz [fundadora do Anis], que fez a Pesquisa Nacional do Aborto, é importantíssima nesse processo. Mostramos quem morre nessa situação e que a ideia de criminalizar ou proibir não impede que mulheres pratiquem abortos. O que acontece é que essas mulheres fazem abortos em condições absolutamente inseguras. Essa peça então mobiliza esses argumentos para jogar o debate para o Supremo, debate que estava só no Parlamento até então.
A Pesquisa Nacional do Aborto foi feita em 2010 e 2016 pela Universidade de Brasília e pelo Anis – Instituto de Bioética. Com metodologia baseada na técnica de urna, que permite garantir sigilo e anonimato às mulheres entrevistadas, o levantamento mostrou que, só em 2015, 503 mil mulheres brasileiras fizeram um aborto. Elas são mulheres comuns: a maioria é jovem, tem filhos e segue uma das religiões majoritárias no país – são católicas, evangélicas ou espíritas.
Geralmente o movimento contrário à descriminalização e legalização do aborto contesta esses dados, falando que não são verdadeiros ou que são exagerados…
Na verdade, não há propriamente um debate científico. A parte contrária não traz dados que se opõem aos nosso dados. Os dados da Pesquisa Nacional do Aborto não são contestados pela comunidade científica. O que esse setor que se opõe à legalização do aborto faz é criar “fake news”. Eles criam um discurso que não tem base. Eles não têm dados. Não há nenhum questionamento metodológico sobre a pesquisa. O que fazem é lançar frases e argumentos, na minha avaliação, sem qualquer compromisso com debate científico. O que há é uma retórica conservadora que aparentemente contesta dados, mas a gente não reconhece nenhuma contestação científica por parte deles. Para contrabalancear isso, há também argumentos importantes, alguns deles que estão sendo trazidos pelos amici curiae [na ADPF 442], que diz respeito aos países que legalizaram e como isso reduziu o número de mortes maternas.
Dentro dessa retórica do movimento contrário à legalização, o argumento principal é sempre baseado no direito à vida desse embrião, pois eles defendem que a vida começa na concepção. Como se argumenta contra essa afirmação? E por que a ação pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação?
A questão das 12 semanas foi uma opção por verificar que esse era o período mais comum em legislações estrangeiras. A gente entende que o conceito de início da vida e de proteção da vida, que é o que defendemos, tem que se dar não por argumentos morais e religiosos e nem mesmo pode entrar em argumentos que se digam médicos, porque na verdade esse é um conceito que tem que ter uma interpretação social. Para entender isso, procuro citar um exemplo que é muito prático: o fim da vida. Quando é o fim da vida? Até 1997, antes da lei de transplante, o fim da vida era determinado pela parada do batimento cardíaco. Só que para atender uma demanda social e diante da evolução da medicina, da possibilidade de se fazer transplantes de órgãos, se alterou esse conceito e o fim da vida passou a ser atribuído à morte cerebral. E é justamente a declaração de morte cerebral que permite que a pessoa, ainda com o coração batendo, possa passar por uma cirurgia e possam ser retirados os seus órgãos e eles consigam ser transplantados em tempo hábil. Eu vivi isso com o meu pai, que fez transplante do coração. Para mim é uma marca forte. E aí, você pergunta: então a medicina mudou de ideia e portanto uma pessoa que retira um órgão para fazer transplante está matando a outra pessoa? E olha que estamos falando de adulto, não estamos falando de feto, nem da concepção.
O que a gente sustenta na argumentação da ADPF é o que é aceito em todos os países desenvolvidos. Por que no Hemisfério Norte praticamente todos os países descriminalizaram e legalizaram o aborto? Por que no Hemisfério Sul, onde estão os países pobres, onde as mulheres morrem mais, o aborto é criminalizado? Porque a própria ciência evoluiu para entender que tinha que determinar um meio termo, para que se pudesse garantir também a proteção da mulher e, em última análise, quando você já tiver um embrião com mais tempo, aí sim, não autorizar o aborto, por uma questão até de risco. Não há uma razão médica que determine a 12ª semana, é uma opção de política social pensar nesse equilíbrio. Isso no direito significa que até a 12ª semana de gestação você não está desconsiderando aquele embrião ainda inicial, mas está dizendo que o que prevalece a vontade da mulher. É uma determinação de um tempo que considera os valores e os interesses em jogo.
O período, então, tem relação com a formação do sistema nervoso central, mas isso também não deve ser uma determinação da medicina. A gente entende que tem que ser uma determinação em relação ao papel social e à conciliação e à proteção de todos os interesses das pessoas envolvidas. Portanto o que eu digo é que quem defende a vida somos nós, que estamos defendendo a vida das mulheres. Porque do jeito que está, se mulheres morrem, como esses grupos podem dizer que defendem a vida?
A ideia de criminalizar ou proibir não impede que mulheres pratiquem abortos.
Também se fala que a descriminalização vai fazer que as mulheres passem a ver o aborto como um método anticoncepcional de emergência. Como você avalia esse argumento? É necessário também que outras políticas públicas, de educação sexual, por exemplo, se fortaleçam com a legalização do aborto?
Esse argumento de que aborto é método anticoncepcional é o tipo de argumento que um homem faz. Parte do pressuposto que a mulher escolhe fazer um aborto, que ela efetivamente tem um desprezo por ser mãe e aí, ao invés de tomar uma pílula, ela fala ‘se eu engravidar, eu aborto’. Acho que esse é um argumento misógino. Porque quem compreende a dor de uma mulher sabe que o aborto é sempre a última opção. Uma mulher não escolhe o aborto, e este nem é um procedimento fácil. A própria luta feminista determina aquelas frases que são tão importantes: educação sexual para prevenir, anticoncepcional para não engravidar e aborto legal para não morrer. Para mim isso resume; é a sabedoria das ruas que nos define. Também é preciso compreender que esses grupos, que estão hoje defendendo a manutenção da criminalização do aborto, são os mesmo que estão defendendo o Escola sem Partido, tentando impedir o debate de gênero, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a educação sexual na escola. Então, na verdade, o que está por trás desses argumentos conservadores é uma lógica autoritária, misógina, machista e não se sustenta em dados da realidade.
Você comentou o fato de o aborto ser a última opção, de não ser um procedimento fácil. Isso é uma coisa que permeia os dois lados desse embate. Todo mundo fala sobre como essa é uma decisão difícil, que gera uma série de traumas. E também existe o fato de que a gente conversa pouco sobre isso. Por quê? É por causa da criminalização? Ou por que existe esse estigma sobre a mulher que aborta? É esse estigma que faz que a mulher tenha esses traumas ou só o fato do aborto em si?
Acho que é uma combinação dos dois fatores. Mesmo se a gente legalizar, ainda vai continuar o preconceito, o machismo. Se a gente pegar hoje o exemplo do aborto que já é legal — são 3 hipóteses, risco de vida, em caso de estupro e feto anencéfalo, que também que foi o Supremo que permitiu —, as mulheres não estão conseguindo ter acesso. A legalização é o melhor quadro para que, inclusive, a gente possa dar maior apoio, para ter espaços em que mulher possa ter liberdade de conversar sobre isso, ter acesso a informações. O quadro do aborto legalizado no Uruguai, por exemplo, levou a redução do número de abortos. A gente trabalhar sob a perspectiva de garantia de direitos, de políticas públicas de saúde que pensem na pessoa e não sirvam para perseguir ou criminalizar pessoas. Se o Uruguai reduziu o número de interrupções de gravidez com a legalização, a gente deve seguir essa perspectiva. Não vai ser fácil, mesmo legalizado, mas a gente tem que ter uma política de assistência e de abertura para essa mulher, para ter o apoio necessário, até para escolher, se for o caso, querer ser mãe.
Porque do jeito que está, se mulheres morrem, como esses grupos podem dizer que defendem a vida?
Os movimentos contrários à legalização criticam o fato de esse debate ter sido levado ao Supremo Tribunal Federal e defendem que a forma democrática de fazê-lo seria no Congresso. No ano passado, houve o caso emblemático da PEC 181/2011, que inicialmente discutia a ampliação da licença-paternidade, mas teve o texto alterado numa comissão – composta por 18 homens – para inviabilizar o aborto até mesmo em casos de estupro. Como avalia essa atuação no Congresso e por que é necessário fazer essa discussão no Judiciário no Brasil?
Acho que o espaço do Parlamento é um espaço democrático e eu, particularmente, não sou uma defensora de um ativismo judicial irrestrito. Mas no cenário nacional, o Supremo está sendo chamado a ocupar um espaço político, justamente pelo nível baixíssimo de parlamentares, com honrosas exceções. Um Parlamento desacreditado, conservador, misógino, que tem posições absolutamente anti-democráticas. Esse enfraquecimento do Parlamento, de um debate que é especialmente reacionário, tem levado o Supremo a assumir um protagonismo. Nós no Psol temos o projeto de lei do Jean Wyllys, que é um texto excelente que utiliza experiências internacionais para propor a legalização do aborto no Brasil. Mas esse PL simplesmente não é discutido, porque essa bancada da bíblia, da bala e do boi simplesmente interdita o debate. O casamento gay, por exemplo, simplesmente não se consegue votar no Parlamento. O que o Supremo fez? Foi lá, deliberou e legislou. Orientou o CNJ e hoje pessoas do mesmo sexo se casam, mas não tem uma lei que garanta isso.
A ADPF foi apresentada em março do ano passado; de lá para cá, o STF negou, no final do ano passado, o pedido de Rebeca Mendes para realizar o aborto seguro, que foi feito com base na ação. Por outro lado, anteriormente a Corte já tomou decisões favoráveis a descriminalização e a legalização. Essas decisões, sobre Rebeca e as anteriores, terão que tipo de influência na decisão sobre a ADPF 442?
A decisão da Rebeca Mendes foi uma decisão formal da relatora, a ministra Rosa Weber. Ela não entrou no mérito. Não negou dizendo que a Rebeca não teria direito. O que ela fez foi uma argumentação formal dizendo que aquele tipo de ação não servia para resolver casos individuais. Saiu pela tangente, é verdade, mas tecnicamente a Rosa Weber tem razão. Acho que a gente cumpriu um papel de levar o caso adiante, pois ela queria pedir a autorização. Mas eu não vejo essa decisão como antecipação do mérito, não. Para mim foi uma decisão formal, dentro também de regras jurídicas de uma tradição formalista, por entender que não cabia esse tipo de movimento.
Sobre as decisões anteriores, a nossa peça faz um histórico delas, mostrando como o próprio Supremo já tem pensado esse caso. Não só na ADPF 54, do feto anencéfalo, mas tem um debate anterior, que foi uma análise da lei de bioética em relação ao descarte de embriões, que também sinaliza a compreensão jurídica do Supremo. A gente cita esse debate de bioética, no qual se autorizou o descarte de embriões fruto de inseminação in vitro. Também o caso da ADPF 54, que foi muito importante, e mais recentemente uma decisão em habeas corpus, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que concedeu a ordem mas somente para aquele caso individual, declarando a inconstitucionalidade dessa criminalização. O que a gente avalia é que a jurisprudência mais recente do Supremo se coloca do nosso lado. E acho que é por isso que os conservadores estão tão preocupados com essa ADPF; porque ela dialoga e está sintonizada com as interpretações constitucionais e jurídicas mais recentes já consideradas pela Corte.
O fato de a ministra Rosa Weber ter chamado a audiência pública demonstra interesse da parte dela em de fato julgar o mérito agora? Acha a audiência importante para esse discussão?
Quando você chama uma audiência pública, significa que os ministros vão ter a oportunidade de ouvir os argumentos. E são várias organizações, serão 2 dias de várias falas, com especialistas, cientistas, feministas, religiosos, associações católicas, evangélicas. São grupos que estavam se posicionando fora do Supremo e que agora vão ter oportunidade de revelar os seus argumentos e suas convicções publicamente. Acho que isso ajuda o Supremo e esse é o sentido da audiência pública também, de trazer essas vozes fora do mundo jurídico, para que os ministros possam ter acesso a uma argumentação. Eu acho que a sociedade brasileira precisa dessa audiência pública também para quebrar esse tabu. A gente precisa passar a limpo esse tema do aborto.
E qual é o impacto de se realizar essa discussão em um ano eleitoral?
A gente não esperava que essa audiência pública fosse sair tão cedo. Acho que ano eleitoral tem suas vantagens e desvantagens. A vantagem é que as pessoas vão ter que falar sobre isso. Nós estamos vendo os candidatos à Presidência sendo questionados. Não tem outra interpretação de por que o aborto é criminalizado até hoje se não o fato de não termos mulheres ocupando os espaços de poder, o fato de termos somente 10% de mulheres ocupando as casas legislativas. São homens que decidem sobre os corpos das mulheres. E ano eleitoral é aquele que ninguém pode dizer que não sabe, tem que se posicionar. Por outro lado, vão ter partidos que não assumem uma postura sobre o assunto e vão ter mulheres dentro desses partidos que são favoráveis à legalização do aborto, mas que vão preferir não assumir essa pauta porque não é uma pauta popular. Nós tivemos o PT no poder durante mais de 10 anos com esse assunto sendo absolutamente interditado. Por questões de acordo com a bancada evangélica que ali era aliada do governo Lula e Dilma. A primeira mulher presidente lamentavelmente não assumiu uma posição pela legalização. Pelo contrário, disse que era contra. A legalização do aborto não é uma pauta que ganha voto.
A gente precisa passar a limpo esse tema do aborto.
E o que deve acontecer depois da audiência?
Depois dessas audiências, a Procuradoria Geral da República faz um parecer, que a Rosa Weber vai analisar, preparar o voto e pedir data para o julgamento no Plenário a qualquer momento. O tempo tradicional de andamento de ações do tipo ADPF costuma ser muito longo. São anos. E a gente não tem nem 2 anos dessa ação ainda. O que a gente espera é uma maior celeridade nesse caso, especialmente porque mulheres continuam sendo presas [por abortar]. Temos um pedido de liminar na ação, que a gente fez e continuará pressionando para que seja analisado. As mulheres estão morrendo e estão sendo criminalizadas. Tivemos um caso recentemente no Rio de Janeiro, em Costa Barros, de um flagrante. A polícia ainda fica correndo atrás de clínica clandestina. É uma lógica que vê esses espaços e essas mulheres como criminosas. Estaremos pressionando para a urgência desse julgamento, porque a gente entende que não é o caso de deixar para anos a fio. São vidas, são mulheres, são pessoas. A gente tem uma esperança que essa mobilização que as mulheres irão fazer nos dias da audiência pública, toda essa movimentação na rua, essa vitória na Argentina, que se soma à Bolívia, a legalização na Irlanda, mostram que o cenário está favorável. O nosso ideal seria já julgar esse caso em 2019.
Não basta a gente achar que uma vitória no Supremo também vai necessariamente garantir o apoio e o serviço de atendimento de aborto legal pelo SUS.
Espera que haja uma reação no Congresso caso o STF decida por descriminalizar e legalizar o aborto por meio da ADPF 442? O que acontece depois de uma possível decisão favorável no STF?
A luta é em todos os espaços. Não basta a gente achar que uma vitória no Supremo também vai necessariamente garantir o apoio e o serviço de atendimento de aborto legal pelo SUS. A descriminalização é importante porque ela impede que mulheres sejam presas e, com essa decisão, os médicos vão poder fazer intervenções. Mas a gente vai precisar de alguma regulamentação. Pode ser via Congresso, mas também pode ser via Ministério da Saúde, que é o que temos hoje para o aborto legal. Uma vez o Supremo descriminalizando, por mais que o Congresso vá reagir, não vai poder aprovar uma lei contrariando a decisão.
Na Argentina, o movimento de mulheres na rua foi essencial para que a descriminalização fosse aprovado na Câmara, para avançar ao Senado. É importante que as mulheres ocupem a rua aqui também? O movimento social tem que estar presente nesse momento?
O movimento tem que estar presente. Em todo o País, tem uma mobilização muito interessante, muito forte. Para mim, a Primavera Feminista ainda não acabou e essa onda verde da Argentina nos inspira a estar nas ruas. Então está sendo organizando um grande festival em Brasília, entre os dias 3 e 6, para acompanhar a audiência, articulado com toda essa Frente Nacional pela Descriminalização e Legalização do Aborto, para que também haja movimento nos Estados. Sem mobilização na rua não vamos conseguir ganhar essa briga. É importantíssimo. O que a gente defende é que essa é uma luta de toda a sociedade. Esperamos também que os homens estejam conosco, guiados por nós, mas que estejam também fortalecendo. Sem a mobilização, e a Argentina nos mostrou isso, a gente não consegue.