Lei de 2010 para punir interferência na formação da criança mobiliza diferentes correntes
(Folha de S.Paulo, 24/08/2018 – acesse no site de origem)
Assustada após relatos do filho, machucados em partes íntimas e alertas da terapeuta, uma mãe denuncia o pai da criança por abuso sexual e, depois de um processo judicial extenuante, é acusada de ter problemas mentais, perde a guarda e até o direito de ver o menino, que é entregue definitivamente ao pai.
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O roteiro é igual para dezenas de mães que, afastadas de seus filhos pela Justiça após denúncias de agressões ou abusos sexuais, criaram um coletivo contra as decisões.
No início do mês, elas organizaram um ato em Brasília contra a lei da alienação parental, base de muitos dos processos. Uma mãe levou seu caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que vai analisar a petição.
Criada em 2010, a lei da alienação parental é controversa. O Conselho Federal de Psicologia sempre se opôs à medida, por considerar que acirrava os conflitos familiares e por avaliar que a teoria carece de sustentação científica.
Segundo a lei, a alienação parental é uma “interferência na formação psicológica da criança” promovida por um dos pais (ou figura de autoridade) contra o outro genitor. Na época, convencionou-se dizer que a lei impedia o pai ou a mãe de falar mal do outro para a criança. Como exemplos, a lei cita: realizar campanha de desqualificação, dificultar a convivência e apresentar falsa denúncia.
Caso comprovada, a alienação pode ser punida com multa, alteração da guarda e mudança de visitas, por exemplo.
A questão da falsa denúncia é uma das mais polêmicas e afeta várias das 103 integrantes do coletivo Mães na Luta.
Dentre elas, Adriana, 47, que foi proibida pela Justiça de ver o filho por um ano (seu nome foi alterado para preservar a criança). Os processos correm em segredo de Justiça.
Segundo ela, em 2014, quando estava casada com o pai do menino, a criança, que tinha dois anos, lhe contou sobre “brincadeiras no banho” e descreveu a presença de outro homem. “Ele disse que o ‘papai fez ginástica no pipi do irmão’. Só que o pai dele é filho único”, afirma Adriana, que gravou as conversas.
Ela confrontou o ex-marido, o casal brigou e Adriana registrou boletim de ocorrência para acusá-lo de agressão. “Ele me deu socos e chutes”, afirma a psicóloga, que trabalhava como diretora de RH.
Uma juíza concedeu uma medida cautelar, obrigando o marido a se afastar da casa.
Durante o processo, um laudo psicológico afirmou que a criança não teria sofrido abuso sexual. Além disso, peritas avaliaram que Adriana tinha problemas psiquiátricos, como transtorno esquizotípico, com alucinações e delírios.
“Fiquei chocada, dizia que eu era alienadora em grau severo e tinha abusado do meu filho para incriminar o pai.”
Para se defender, Adriana buscou outros profissionais, como o psiquiatra Jorge Adelino Rodrigues da Silva, então chefe de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRJ. Ele contestou o diagnóstico e apontou a normalidade psíquica dela.
Ainda assim, como Adriana reiterou as denúncias, a guarda unilateral foi concedida ao pai em 2016. Adriana foi proibida de ver o filho por um ano.
Em 2017, uma sentença permitiu que a mãe fizesse visitas supervisionadas no fórum. Adriana diz, porém, que não tem notícias do filho há dois anos. “Como ele está? Como sobrevive? Não tem um único dia que eu não choro”, afirma ela, que perdeu o emprego, vendeu carro e casa para pagar dívidas dos processos.
Segundo a advogada Sandra Vilela, que defende o pai da criança, as acusações contra seu cliente foram descartadas. “Ela já podia estar vendo o filho dela há um ano. Por que ela não vem atrás?”, diz Vilela.
A advogada de Adriana, Noêmia Fonseca, afirma que as visitas ainda não ocorreram porque é preciso pedir o cumprimento da sentença, o que elas devem fazer em breve.
A arquiteta Solange, 42, também denunciou o pai do filho por suspeitas de abuso sexual e perdeu a guarda por alienação parental em 2015. Ela (cujo nome também foi alterado) só pode ver o menino em visitas supervisionadas. Hoje, coordena o coletivo Mães na Luta. “É um crime de Estado, um atentado à vida das crianças entregá-las para abusadores.”
Para a psicóloga Iolete Ribeiro, do Conselho Federal de Psicologia, a lei da alienação parental deveria ser revogada. “Tem contradição de base, a lei pune o alienador com alienação. Não ajuda a criança.”
A promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, está acompanhando os processos e afirma que a lei, única no mundo, inibe as denúncias. “Crianças são entregues a homens investigados por abuso sexual, e a mãe que denuncia é considerada alienadora. Há casos em que revertem a guarda antes do fim da investigação.”
Ela diz que o crime é difícil de comprovar, porque o abusador não costuma deixar vestígios ou testemunhas. Por isso, um processo arquivado não significa necessariamente que o crime não ocorreu.
Já o advogado Nelson Sussumu, presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-SP, é favorável à lei. “Tem homens que não abusaram e ficaram anos sem ver o filho. Até concluir a investigação, a criança já se esqueceu dele”.
A vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Maria Berenice Dias, considera a legislação pedagógica. “Há uma visão machista na sociedade e no Judiciário de que o filho é da mãe. A lei ajudou a refletir sobre isso.”
Analdino Paulino, presidente da Apase (associação de pais que apoiou a lei), diz que a Justiça tende a favorecer a mãe. “O pai é visto mais como provedor do que cuidador.”
Outra corrente, no entanto, defende que o machismo das instituições torna mais fácil desqualificar o depoimento feminino. “A mulher que reclama é vista como desequilibrada, louca”, afirma Ribeiro.
Uma pesquisa inédita da psicóloga e doutora pela Uerj Analícia Martins aponta que a lei é mais usada por homens.
Em 63% dos processos, pais acusam mães de alienação —o contrário ocorre em 19% dos casos. Em 89%, a alienação não é comprovada. Foram avaliados 404 acórdãos entre 2010 e 2016, na BA, MG, RS, SP.
Para ela, que é autora de livros sobre o tema, não há uma resposta fácil. “A legislação pode ser usada tanto por abusadores quanto por pais que buscam ter contato com os filhos. Não dá para generalizar.”