Denice Santiago não cogitava ser policial, mas a major abriu caminho para mulheres na PM baiana. Há três anos, está à frente da Ronda Maria da Penha, que acompanha 2 mil mulheres sob medida protetiva
A major Denice Santiago faz piada com as policiais no estacionamento da 5ª Delegacia Civil de Periperi, na periferia de Salvador. Elas usam batom, unhas vermelhas e carregam uma arma na cintura. Acompanhada de duas policiais, a major entra na viatura para visitar uma das 2,4 mil atendidas pela Ronda Maria da Penha, uma tropa da Polícia Militar da Bahia que acompanha, em 13 cidades do estado, mulheres vítimas de violência doméstica, sob medida protetiva e em situação de vulnerabilidade.
(TPM, 31/08/2018 – acesse no site de origem)
Perto da Igreja do Senhor do Bonfim, em uma casa espaçosa, visitam uma delas, que chegou a buscar com os filhos proteção contra o marido – que já foi preso duas vezes pela Ronda e hoje está foragido – em uma casa abrigo. “Havia coisas delicadas que só consegui contar com o tempo”, diz ela, que apelidou aquelas policiais de “salvadoras de Marias”. Cozinheira de mão-cheia, ela enche a mesa como uma forma de agradecimento ao trabalho das policiais. “A gente sabe o nome dos filhos, os problemas que a mulher tem, se ela cozinha… Vamos criando um vínculo afetivo em que ela se sinta confortável para nos contar tudo”, diz Denice.
Desde 2015, visitas surpresas como essa já resultaram em mais de 120 prisões de agressores por conta do descumprimento de medidas protetivas. Para a major, significam também homicídios evitados.
Denice, 47 anos, é áries com escorpião, filha de Iansã – uma orixá guerreira e determinada –, mãe de um garoto de 17 anos (fruto de seu primeiro casamento) e “nega” para os mais próximos, apelido que ganhou por conta de uma música de Luiz Caldas. É formada em psicologia, com mestrado que investigou a discriminação racial na atividade policial militar no estado da Bahia. Branco correndo é atleta; preto correndo é ladrão é o título de sua dissertação.
A major chegou à corporação por acaso, em 1990, quando sua tia avisou a seu pai sobre o primeiro concurso da polícia baiana para mulheres, depois de 156 anos em que foi exclusiva aos homens. “Não escolhi a polícia militar, ela veio para mim.” Desde então, vem trabalhando para que as policiais baianas sejam vistas e tratadas da mesma maneira que seus colegas homens, mas para que questões como gravidez ou assédio moral não sejam ignoradas. Para isso, criou um centro de referência, o Maria Felipa. E foi a partir das queixas dessas policiais que entrou em contato com a violência doméstica.
A Ronda como remédio
Em quase 30 anos de polícia, Denice fez um pouco de tudo: cuidou da segurança da Arena Fonte Nova (Salvador), incentivou policiais a apresentar recitais, transformou meninos carentes em agentes educadores de trânsito. “Falo para o comandante que ele pode me colocar para trabalhar em qualquer lugar porque sempre vou fazer um barulho.”
E usa dessa mesma criatividade para combater a violência doméstica. Já criou um jogo de tabuleiro para que mulheres percebam violências que sofrem no dia a dia, o Espelho; levou a Ronda para comunidades quilombolas e assentamentos de reforma agrária; e fez com que policiais conversassem com homens em comunidades com alto índice de violência contra a mulher, num papo exclusivamente masculino. Por este projeto, ganhou em 2017 o selo de Práticas Inovadoras de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, entregue pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o que a levou a fazer um intercâmbio com a polícia de Londres no início deste ano.
A Ronda também a salvou. Há três anos, Denice descobriu um câncer que lhe tirou o estômago (“Adoro falar que não tenho estômago para isso”, brinca) e credita ao projeto a força que precisava para se reerguer.
No debate de que participou na Casa Tpm, fez questão de vestir sua farda. “Eu me orgulho muito do que faço, do que sou e de onde estou.” E fica feliz em dar entrevistas como a que você lê a seguir para que mais mulheres reflitam sobre violência doméstica. “Eu aposto muito na prevenção”, conta. “A gente tem que trabalhar para a Ronda ser desnecessária.”
Leia a entrevista na íntegra
Por Bruna Bittencourt