Mulheres contra a opressão, por Eliane Brum

24 de setembro, 2018

O maior movimento de resistência ao projeto autoritário mostra que apoiar Bolsonaro é votar a favor das forças que empobrecem o país e violentam os mais frágeis

(El País, 24/09/2018 – acesse no site de origem)

Analistas do bolsonarismo acreditam que, para seus eleitores, ele é um grito contra o que não funciona e contra o desamparo, ou mesmo contra a precariedade das respostas da democracia para os problemas concretos da vida cotidiana. A candidatura de Jair Bolsonaro também representaria o voto do antipetismo, esse sentimento que ganhou força a partir de 2013 e, em 2015, virou ódio. Ao se posicionarem contra o que o candidato de extrema direita representa, o movimento “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, que abriga quase 3 milhões de brasileiras em sua página no Facebook, denuncia justamente a impossibilidade do voto em Bolsonaro como um voto “antissistema”. O que essas mulheres apontam é que não há nada mais a favor do sistema do que Bolsonaro. Votar nele é votar no que nunca prestou no Brasil, mas sempre existiu. Ou na volta dos que nunca partiram.

É possível votar em Bolsonaro. Pode ser considerado por muitos imoral ou mesmo antiético, já que ele defende abertamente a violência contra os grupos mais frágeis, como mulheres, negros, gays, camponeses e indígenas. E incita a violência num dos países mais violentos do mundo. Mas, se você pensa como ele, faz todo o sentido votar naquele que representa o seu pensamento. É isso, afinal, a democracia. Por mais que para alguns seja difícil aceitar, Bolsonaro e seu autoritarismo são também um produto das contradições da democracia. Bolsonaro é um fenômeno da democracia, não fora dela.

Só não é possível votar em Bolsonaro afirmando que está votando para mudar ou votando como protesto contra tudo o que está aí. Aí não. Essa afirmação desaba logo no primeiro olhar. Votar em Bolsonaro é justamente votar a favor de tudo o que sempre esteve aí. Ou que sempre esteve aí por mais tempo do que qualquer outra coisa.

1) Bolsonaro e os novos coronelismos rurais e urbanos

Não é uma coincidência que as velhas (e também as novas) oligarquias rurais, ligadas à violência no campo, têm em Bolsonaro o seu candidato estampado nas caminhonetes. As forças que Bolsonaro representa atravessam a história brasileira. Às vezes com mais, às vezes com menos poder político. São essas forças que tornaram o Brasil um dos países mais desiguais e mais violentos do mundo.

Bolsonaro não dialoga apenas com a ditadura civil-militar que governou o país pela força de 1964 a 1985. Ele dialoga antes com figuras e forças muito mais antigas e fundadoras do Brasil. Bolsonaro dialoga com o coronelismo que marcou o Brasil rural e que, de muitas formas, permanece até hoje. Mas atualizado, já que nada atravessa as épocas sem adquirir novas nuances e agregar novos protagonistas.

Como fenômeno, Bolsonaro faz uma síntese entre a parcela golpista do militarismo profissional, representada pelo seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, e o coronelismo político de um Brasil rural que usa o “agronegócio” como roupagem de modernização, mas que mantêm as mesmas práticas violentas no campo. Para estes, o Brasil será sempre uma grande fazenda e a luta será sempre para privatizar o que ainda há de terras públicas e coletivas no país. Essas duas forças se conectaram durante vários momentos da história brasileira. Como hoje.

Em regiões como o Norte e o Centro-Oeste do Brasil, este coronelismo não representa as velhas oligarquias rurais do século 19 e primeira metade do século 20, mas novas oligarquias que se constituíram na segunda metade do século passado, tanto durante o processo de expulsão e massacre dos indígenas, para liberar suas terras ancestrais para projetos da ditadura, quanto na grilagem (roubo de terras públicas) de vastas porções de floresta, um processo que segue em curso até hoje e ganhou novo fôlego nos últimos anos.

Parte da grilagem promovida já no século 21 foi legalizada no governo Temer, que tem na “bancada ruralista” sua principal fiadora. Mas, se garantiram e garantem o governo, estes coronéis e seus representantes no Congresso nunca cogitaram votar no candidato do MDB ou do PSDB, mesmo que este seja o partido com que marcam seu poder local ou regional. São eleitores de Bolsonaro desde que ele despontou como candidato.

Agregada aos novos e velhos coronéis, aparece a parcela urbana e mais barulhenta do Brasil evangélico, que usa as palavras com muita competência. A começar pela própria denominação religiosa. Ao transformarem o que é uma brutal disputa de poder em uma guerra do bem contra o mal, parte das lideranças encobre com o discurso religioso aquilo que é político. As críticas a essas lideranças evangélicas são lidas como uma crítica aos evangélicos como grupo religioso, colaborando para discriminar setores da população que já são historicamente discriminados. É deste truque que alguns líderes abusam. Chamar sua bancada no Congresso de “bancada da Bíblia” só os ajuda nessa transmutação da política em religião.

Os evangélicos são um grupo muito heterogêneo e com posicionamentos morais que variam, às vezes radicalmente, nas diferentes igrejas, o que tornaria imprecisa qualquer unidade. Mas o mais importante é que a crítica não é à religião nem a seus fiéis, muito menos se refere à nenhuma suposta versão de guerra santa. Ao contrário. É uma crítica aos estelionatários que usam a religião para o enriquecimento privado e para a conquista de poder político com fins de enriquecimento privado.

A maioria destes estelionatários da fé, que também podem ser chamados de “coronéis da fé”, está alinhada a Bolsonaro. São ao mesmo tempo novos e velhos. A novidade de suas origens e de sua linguagem não é capaz de encobrir que atuam para manter o Brasil exatamente como está, porque é neste contexto que conseguiram enriquecer e conquistar poder. Dependem da miséria, do desamparo e do medo para manter a clientela. Sua disputa é para continuar multiplicando riqueza privada, assim como garantir as benesses públicas que isentam suas igrejas de pagar impostos.

A religião é só o meio. O lucro privado é o fim. A estratégia de encobrir a disputa de poder com os temas morais mostrou-se tão eficaz que milícias da internet, como o MBL, eminentemente urbanas, a adotaram a partir de 2017 para ampliar seu número de seguidores destruindo artistas e manifestações artísticas.

É interessante observar como o que há de mais atrasado no Brasil se juntou a fenômenos recentes para produzir aquele que tem sido chamado na internet de “o coiso”. A nomeação, típica das redes sociais, aponta para dois objetivos: o primeiro é o de não popularizar ainda mais o candidato, o que pode garantir os votos daqueles que, quando chegam às urnas, votam no nome que lembram; o segundo, de que tudo aquilo que ele representa, em seu autoritarismo, seria inominável, ou não nomeável. No “coiso” cabem muitas coisas. Bolsonaro seria uma espécie de Voldemort, o vilão da série Harry Potter, a quem os bruxos preferem se referir como “você sabem quem”, para que a invocação do nome não o materialize como realidade física.

O fato de Jair Bolsonaro liderar as intenções de voto (28%, segundo a última pesquisa do Datafolha), mostra a força com que o que há mais arcaico e sombrio no Brasil emergiu para a luz. E encarnou numa figura que é muito menos um capitão reformado do Exército e muito mais um político profissional. Não um político profissional que disputa a construção de um país, mas um que trabalha para a própria permanência na folha de pagamento do Congresso.

Em 26 anos como parlamentar, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos de sua autoria: 13 anos de salário, benefícios, verba de gabinete etc para cada projeto. Ao ser perguntado sobre sua baixa produtividade, o candidato respondeu: “Tão importante quanto você fazer um gol é não tomar um gol”.

Estes são os fatos, caso os fatos valessem na construção mental dos eleitores. O desempenho que derrubaria qualquer funcionário, em qualquer empresa do mundo, o premiou como funcionário do povo. Tanto que Bolsonaro se tornou o líder nas pesquisas para a presidência da República. Na composição dos seus eleitores, ele lidera entre os mais ricos e os mais escolarizados, justamente aqueles que se supunha terem mais acesso à informação de qualidade, caso isso importasse na tomada de decisões. Na época da autoverdade, porém, os fatos nada valem.

Há vários adjetivos que poderiam ser usados para definir o comportamento do eleitor de Bolsonaro. Ilegítimo não é um deles. Se você acredita que o político ideal é aquele que aprovou dois projetos em 26 anos de serviço público e se sente representado pelo desempenho de Bolsonaro, faz todo sentido votar nele. Por uma questão de coerência, inclusive, este deveria se tornar o critério de produtividade para que os empresários que são também eleitores de Bolsonaro passem a selecionar seus funcionários e estabelecer planos de carreira.

2) Como as elites descobriram que as ruas não são seu “pet”

O fenômeno chamado “coiso” também expõe à luz a monumental arrogância de uma parte da elite política e econômica do Brasil, assim como a arrogância de uma parcela do judiciário. Essas elites compartilhavam da ilusão de controlar as ruas e também os processos políticos. Descobriram que ver o Brasil do alto não é o suficiente para compreender os Brasis. Começam a perceber que, quando achavam que usavam, estavam de fato sendo usadas. Bolsonaro não revela apenas a si mesmo, mas muito além de si mesmo. Não é acontecimento isolado, mas trama.

O PT descobriu em 2013 que já não era o partido das ruas de uma forma bastante dolorosa. Naquele momento, a arrogância do partido era tanta que achava que as ruas seriam dele para sempre. Tanto que nem precisava mais andar por elas. Em 2013, o PT descobriu que estava sendo expulso das ruas. Em 2015, bonecos infláveis de Lula e de Dilma como presidiários invadiram também os céus. O antipetismo virava ódio.

Mas o exemplo mais evidente ainda é o do PSDB, cujo drama se desenrola neste momento. Quando Aécio Neves (PSDB) perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff (PT), ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia.

Aécio, o corrupto, iniciava ali uma crise e abria um precedente perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio dizendo que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para história não só pelo seu envolvimento com a corrupção, mas por esse ato de uma irresponsabilidade criminosa. O tucano deve ser marcado como um dos políticos que mais colaborou para a corrosão da democracia neste início de século.

De dentro do hospital, onde se recupera de um ataque à faca, Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que pode não aceitar o resultado da eleição em caso de derrota. Seu vice, Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. É irresponsável e grave demais que um político anuncie que participa do jogo, mas que só aceitará o resultado em caso de vitória. Qualquer criança jogando uma pelada de futebol num campinho de várzea sabe que não é possível só aceitar as regras do jogo quando se ganha.

O PSDB teve um papel importante no impeachment sem base legal de Dilma Rousseff e participou do governo corrupto de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso. Recentemente, um dos caciques do partido, Tasso Jereissati, afirmou que entrar no governo Temer foi “o grande erro” do PSDB. “Fomos engolidos pela tentação do poder”, admitiu. Tarde demais.

Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Aécio quanto o PSDB são hoje menores do que nunca, em todos os sentidos. Pior do que não ter ressonância é ter perdido o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa que nem seus caciques sabem mais que formato tem.

Não deixa de ser irônico o destino de Michel Temer. Quase trágico. Temer, o vice traidor, reconhecida raposa política, acreditava que poderia fazer tudo o que fez e ainda ser visto como um estadista. Logo depois do impeachment, era bem claro que Temer e seus apoiadores, no Congresso, no Mercado e em setores da Imprensa, acreditavam que estava tudo dominado e era só voltar ao que sempre foi. Temer está terminando o mandato como o presidente mais impopular da história (ou o mais impopular desde que há institutos de pesquisa para aferir a opinião da população).

O desespero dos liberais e neoliberais também sinaliza o quanto de ilusão aqueles que representam o Mercado alimentam sobre si mesmos. Parte das elites econômicas, tendo como exemplo mais evidente a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que atuou de forma explícita e decisiva para o impeachment da presidente eleita, assim como vários porta-vozes do que se chama “Mercado”, acreditavam que tudo andaria conforme sua receita de bolo. Botariam no Planalto alguém da sua confiança e pronto, fariam uma “ponte para o futuro” que manteria os privilégios do passado. Acreditavam que o povo nas ruas não passava de marionete, que o povo nas ruas era o verdadeiro pato da FIESP.

De repente, Jair Bolsonaro, que deveria ser apenas um parceiro bufão na derrubada do governo do PT, alcançou o primeiro lugar nas pesquisas eleitorais para a presidência. Junto com ele, está Paulo Guedes, um economista ultraliberal que é radical demais até mesmo para os liberais. Quando fala, apavora. Dias atrás lançou uma espécie de nova CPMF. Teve que sair se desmentindo e cancelando compromissos para não dizer mais bobagens sinceras, mas altamente impopulares.

Não fosse a situação do Brasil ser tão trágica, seria delicioso ver uma revista liberal como a britânica The Economist, que já decolou e aterrissou o Cristo Redentor nos tempos de Dilma Rousseff, lançar Jair Bolsonaro como “a mais recente ameaça da América Latina” na capa da semana passada. A revista favorita do Mercado manifestou-se de forma inequívoca contra o ultraliberalismo de Paulo Guedes, o golpismo de Hamilton Mourão e o autoritarismo de Jair Bolsonaro. Foi chamada nas redes sociais de “The Communist”. Sim, no Brasil o realismo mágico é só realismo.

Certamente não era este o roteiro imaginado por aqueles que desrespeitaram o voto dos brasileiros. Também não era este o script que a parcela da grande imprensa que atuou decisivamente para o impeachment sonhava para esse momento. A Globo descobriu logo cedo, ao fracassar em derrubar Michel Temer após as denúncias de corrupção, que seu imenso poder tinha limites. Jair Bolsonaro, aliás, não se cansa de lembrar ao vivo, nos estúdios da emissora, o quanto a Globo apoiou a ditadura civil-militar que ele enaltece com tanto entusiasmo.

O atual cenário dificilmente deve ser o roteiro esperado também por servidores do Judiciário e do Ministério Público que decidiram personalizar a justiça, se esqueceram que são funcionários públicos e acreditaram que eram heróis. Quem venceu – e segue vencendo – é esse poder que atravessa governos e que hoje é representado pela “bancada ruralista”, grande parte dela conectada à escalada de violência no campo e na floresta contra camponeses e indígenas, que vem se acirrando desde 2015. Ao redor da bancada ruralista gravitam a bancada dos defensores de armas, que lucram com a violência, e a dos estelionatários da fé, que manipulam os temas morais para conquistar poder e privilégios.

É este o mundo de Bolsonaro, que por isso tem assustado não só a esquerda, mas também a direita chique e os liberais genuínos, estes que têm na The Economist o seu oráculo. É a parcela atrasada e violenta do Brasil rural, associada ao que há de mais podre nos fenômenos urbanos, que disputa a presidência do país com chances de ganhar. Bolsonaro representa o homem branco ultraconservador, mas bruto e sem lustro, que os ilustrados de direita e de esquerda não querem na sua sala de jantar.

Com possibilidades cada vez maiores de chegar ao segundo turno, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), o candidato de Lula, torna o cenário ainda mais complexo. A tal da opção de “centro”, que tantos encheram a boca para falar, a duas semanas da eleição ainda não mobilizou os eleitores. De dentro da prisão, onde foi colocado por um processo rápido demais, com provas frágeis demais e juízes falastrões demais, Lula segue influenciando os destinos do país.

Mesmo tendo sido impedido pelo judiciário de ser candidato, ele ainda é um dos principais protagonistas da eleição. Como nada é simples, Haddad e o PT têm costurado apoio entre aliados que os traíram na batalha do impeachment, têm costurado apoio inclusive entre políticos que participam do governo Temer. Aliados que se tornaram “golpistas” são aliados de novo sem deixarem de ser “golpistas”. No Brasil, a real politik é mágica. Mas, quando o eleitor não vota conforme o esperado, ele é chamado de ignorante.

3) O movimento das mulheres contra Bolsonaro é o mais importante desta eleição

As mulheres são mais da metade da população no Brasil, mas ainda têm pouca representatividade na política formal. Uma de suas representantes mais interessantes e promissoras, Marielle Franco (PSOL), vereadora do Rio, foi executada a tiros num crime ainda não desvendado e impune, apesar de já terem se passado mais de seis meses.

Seu protagonismo político incomodou muitos que estavam acostumados a falar sozinhos e, de repente, viram seus interesses serem atingidos por uma mulher. E não por qualquer mulher. Criada no complexo de favelas da Maré, Marielle era negra, lésbica e pobre. Ao longo da história do Brasil, ela representa os grupos mais frágeis e mais violentados que, graças à muita luta, começam a ter poder político. Foi então exterminada a balas de alto calibre, por uma arma de uso restrito, num percurso de câmeras desligadas.

Com o gesto iniciado na internet e programado para ganhar as ruas, as mulheres tornaram-se protagonistas desta campanha eleitoral tão complexa e delicada. O movimento autônomo começou por mulheres na Bahia, ao largo das lideranças do centro-sul e dos grupos feministas mais conhecidos do Brasil. Do debate no Facebook passou a inspirar as manifestações contra Bolsonaro marcadas para o próximo sábado em várias cidades do Brasil e do mundo. Nos atos de 29 de setembro, elas esperam também o apoio dos homens que amam as mulheres.

A proposta dessas mulheres é fazer atos suprapartidários contra Jair Bolsonaro e tudo o que ele representa. Bolsonaro é um homem que, por suas declarações, já provou que odeia as mulheres, tanto quanto o seu vice, o general reformado Hamilton Mourão. Bolsonaro é um tipo clássico, especialmente em países que viveram suas versões de faroeste: o homem branco, que se sente superior apenas por ter nascido branco; heterossexual, mas do tipo que precisa o tempo todo apregoar sua heterossexualidade, como se silenciar sobre ela pudesse de alguma forma ameaçá-la; que se sente mais potente com uma arma de fogo na mão e, quando não a tem, simula com as mãos a expressão fálica, como uma afirmação de masculinidade que precisa ser constantemente reiterada para não ser posta em dúvida.

Quando qualquer um destes ingredientes que, na sua crença, fazem dele um “homem”, é de alguma forma questionado, sente-se ameaçado e reage com violência. Um psicólogo de almanaque possivelmente diria que Bolsonaro é inseguro. No hospital, fazendo gesto de atirar com as mãos, parecia um garotinho querendo aprovação da plateia numa apresentação da pré-escola. Mas deve ser mais complexo do que isso.

Para manter o privilégio de se sentir superior num mundo em que já não basta ser branco e ter uma arma para se manter no topo da cadeia alimentar, Bolsonaro desrespeita as minorias, raciais e de gênero, justamente as parcelas mais frágeis da população, e estimula a violência contra elas. Neste momento, encarna um outro tipo clássico, o fortão covarde da escola. Faz isso afirmando que está defendendo os “valores tradicionais”. Mas o que chama de valores tradicionais são apenas os seus privilégios.

É interessante observar que Michel Temer, ao assumir o poder, promoveu um retrato amarelado com seu ministério de homens brancos, a maioria deles mais velhos. Pairando sobre essa imagem, especialmente no primeiro ano de governo, estava a figura de sua mulher, 43 anos mais jovem: Marcela Temer, a esposa “bela, recatada e do lar”, como definiu a revista Veja.

Essa conformação simbólica de poder remetia à República Velha, como foi dito, mas muito mais a um folhetim de Nelson Rodrigues. Enquanto foi possível, alguns jornalistas, também homens e brancos, a maioria mais velhos, fizeram comentários encantados, alguns deles bastante constrangedores, sobre a beleza da mulher do presidente. Por algum tempo, antes de seu governo ruir por corrupção e incompetência, Temer ganhou o atributo de uma potência viril aplicada à política, por estar casado com uma mulher bonita e jovem.

Jair Bolsonaro leva o machismo e o patriarcado a outro patamar. As mulheres não são objetos, mas um inimigo. Em 2014, na Câmara dos Deputados, disse que não estupraria a colega Maria do Rosário (PT): “Você não merece ser estuprada, é muito feia”. Depois, repetiu ao jornal Zero Hora: “Ela não merece (ser estuprada). Porque ela é muito ruim, ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”. O comentário, dito e repetido, o tornou réu por apologia ao estupro no Supremo Tribunal Federal.

Sobre a licença-maternidade, conquista histórica das mulheres (e também dos homens), o parlamentar que aprovou dois projetos de lei em 26 anos de trabalho maravilhosamente remunerado, afirmou em 2015: “Mulheres devem ganhar um salário menor porque engravidam. Quando ela voltar (da licença-maternidade) vai ter um mês de férias, ou seja, trabalhou cinco meses em um ano”.

Em 2011, ele afirmou: “Sou preconceituoso com muito orgulho”. Embora os juízes brancos do Supremo Tribunal Federal não reconheçam, o que Bolsonaro chama de preconceito é seguidamente racismo. Ao responder a uma pergunta da cantora Preta Gil, ele disse que seus filhos jamais namorariam uma mulher negra ou se tornariam gays: “Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu”. Em 2017, ao fazer uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, o parlamentar contou que fez uma visita a um quilombo: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. (…) Não fazem nada, eu acho que nem pra procriador servem mais”.

O “preconceito” que tanto orgulha Bolsonaro é largamente aplicado contra os homossexuais, num país com alto índice de assassinatos por homofobia. Entre as várias declarações contra gays, Bolsonaro chegou a dizer numa entrevista: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que meu filho morra num acidente de carro do que apareça com um bigodudo por aí”.

É importante compreender por que, mesmo com essas declarações, existem mulheres que votam em Bolsonaro. Há quem acredite que seria o mesmo tipo de atração pelo perigo e pela violência que faz com que algumas mulheres se apaixonem por criminosos famosos – ou mesmo não famosos. Os presídios estão cheias de romances como estes. Algumas eleitoras de Bolsonaro já justificaram o voto afirmando que este é o só o “jeitão” dele, que “na verdade” ele seria um “defensor das mulheres”. Uma delas me disse que reconhece que ele é “meio burrão”, mas ainda assim acha que ele “vai botar ordem na casa”. Neste caso, o machismo importaria menos que a crença de que Bolsonaro vai deixá-la “segura”.

Ao escutar bolsonaristas, outras hipóteses surgiram. Para algumas, não é um voto no macho alfa, como eu supunha no princípio, mas o voto em um caçula meio bobão, mas carismático, por quem sentem um tipo de amor permissivo. Seria importante fazer uma pesquisa qualitativa e quantitativa formal com as eleitoras de Bolsonaro e Mourão, para compreender o que pode levar mulheres a votar em homens que as desrespeitam.

O vice de Bolsonaro é sua alma gêmea. Bolsonaro e Mourão, ambos adoradores de armas, coincidem tanto na ideologia quanto na eloquência de seus discursos. Em agosto, durante um evento no sul do país, Mourão afirmou que o Brasil herdou “a indolência dos indígenas” e “a malandragem dos africanos”. Estava teorizando sobre as raízes do “subdesenvolvimento” do Brasil e da América Latina com a competência habitual.

Em 17 de setembro, o general reformado atacou as mulheres ao relacionar a violência nas “áreas mais carentes” ao fato de as famílias serem chefiadas por “mães e avós”, sem “pais e avôs”. A criação dos filhos por mulheres sozinhas, na opinião do general, resultaria “numa fábrica de elementos desajustados e que tendem a ingressar em narcoquadrilhas que afetam o nosso país”.

Ao fazer essa afirmação, o vice de Bolsonaro atingiu violentamente as mulheres mais pobres, a maioria delas negras, que são chefes de família e criam seus filhos sozinhas com enorme esforço. Mas não apenas elas. A afirmação provocou um apoio surpreendente ao movimento das mulheres contra Bolsonaro. A apresentadora de TV Rachel Sheherazade, uma das porta-vozes na imprensa da direita mais truculenta do Brasil, publicou em sua conta no Twitter: “Sou mulher. Crio dois filhos sozinha. Fui criada por minha mãe e minha avó. Não. Não somos criminosas. Somos heroínas”. E acrescentou uma das hashtags do movimento: #EleNão”.

As mulheres são o segmento da população que mais rejeita Jair Bolsonaro. Mas, após ele ter levado uma facada durante um ato de campanha, Bolsonaro cresceu. “Apesar de ter evoluído no estrato, cresceu sete pontos no último mês, o apoio no segmento feminino é mais localizado entre as que têm maior renda familiar —chega a 32% entre as que reúnem mais de 5 salários mínimos, contra apenas 14% entre as mais pobres”, analisam Mauro Paulino e Alessandro Janoni, na Folha de S. Paulo. O primeiro estrato corresponde a apenas 6% do eleitorado e o segundo alcança 28%.

Em entrevista ao El País, o estatístico Paulo Guimarães afirmou: “As mulheres não votam no Bolsonaro, mas as mulheres pobres tendem a decidir o voto mais tarde. O país é absurdamente machista. O marido vai dizer em quem elas devem votar, principalmente nas classes mais baixas, das mulheres mais agredidas. O voto da mulher tem convergido para o voto do homem, historicamente”.

Será que ainda é assim? Minha hipótese é que o crescimento do protagonismo das mulheres também na esfera doméstica, em parte possibilitados pelo Bolsa Família e pelo aumento real do salário mínimo, que beneficiou o grande contingente de empregadas domésticas do país, tenha mudado essas relações de poder. Não totalmente, mas esta é uma força emergente. Como repórter que escuta gente há 30 anos, nunca escutei tantas mulheres discordarem de seus maridos, nas entrevistas que faço com famílias, como hoje. Inclusive no voto.

É uma enormidade o significado de que a principal resistência à candidatura de Bolsonaro e a tudo o que essa candidatura representa venha justamente das mulheres. Elas, que são alijadas da política formal, quando não mortas, tornaram-se a principal força política de oposição a um projeto explicitamente autoritário. E fazem política justamente no território que até então era dominado pelos apoiadores de Bolsonaro: as redes sociais. Exatamente por isso, as administradoras da página do movimento foram haqueadas, ameaçadas e tiveram seus dados expostos, na covardia habitual dos que não confiam nos seus argumentos, só dispõem da força bruta.

Se o movimento é suprapartidário e abarca as mulheres de todas as cores e origens, é importante sublinhar que esse movimento é também racial e de classe. Como já foi dito, Bolsonaro encontra seus eleitores, segundo as pesquisas, entre os homens mais ricos e os mais escolarizados. E tem sua maior rejeição entre as mulheres e entre os mais pobres. Como as estatísticas mostram, a maioria das mulheres mais pobres do país é negra.

O voto das mulheres negras pode determinar o destino de Bolsonaro. Este não é definitivamente um dado qualquer no Brasil. Há grande poder e significado nessa constatação. É bastante simbólico que seja esta a força que toda a repressão dos últimos anos do país, todos os direitos a menos, não conseguiu parar. As mulheres que foram para a universidade pela primeira vez, as mulheres que passaram a ganhar um pouco mais, as mulheres que pela primeira vez tiveram direitos trabalhistas igualitários, como as domésticas. Talvez não seja coincidência que a criadora da página “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, que por conta das ameaças hoje é citada apenas pelas iniciais, seja negra.

O movimento das Mulheres Unidas Contra Bolsonaro é o mais importante acontecimento desta eleição. Caminhar junto com elas no próximo sábado, 29 de setembro, é escolher dizer juntos, mulheres e homens, em uníssono, não apesar de todas as diferenças, mas com todas as diferenças, que escolhemos a liberdade contra a opressão. Que escolhemos o respeito contra o preconceito. Que escolhemos a igualdade contra o racismo. Que escolhemos a diversidade dos muitos contra a hegemonia do um. Que escolhemos a paz contra a violência.

Se depender das mulheres unidas contra Bolsonaro, o ódio não governará o Brasil.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: [email protected] Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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