Essa sexta-feira, dia 28 de setembro, é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto
(Marie Claire, 28/09/2018 – acesse no site de origem)
A raiva pode ser um sentimento produtivo. Isso quem diz é a psicanálise e o feminismo. Há vários sentimentos por trás da onda verde pela legalização do aborto na América Latina e no Caribe – um deles é a raiva nascida do luto de irmãs, mães e filhas mortas pelo aborto clandestino em nossos países.
O dia 28 de setembro é para lembrar de cada uma delas, nomeá-las em público e em voz alta, mas também para nos reconhecermos em um movimento com destino certo. Iremos descriminalizar o aborto. É só uma questão de tempo.
Somos pacientes, esse é outro sentimento. É uma paciência indignada, preciso confessar. Assim estavam as meninas e mulheres jovens nas ruas de Buenos Aires nos dias de votação pela legalização.
Erra quem pensa que o feminismo perdeu no dia 8 de agosto – tolice, o feminismo já legalizou o aborto nas ruas da Argentina. As bandeiras azuis das comunidades de fé terão dificuldades para converter a nova geração de mulheres que entrará nas universidades, chegará ao mundo do trabalho ou viverá a maternidade com a memória de ter estado nas ruas com muitas milhares de outras mulheres convictas de que prender mulheres por aborto é injusto.
Entre nós, há coragem. Não temos medo de quem nos ameaça, ignoramos quem nos amaldiçoa com fogueira eterna. Há vários rostos para inspirar a nossa coragem. O meu é o de Ingriane Barbosa, a jovem babá negra do Rio de Janeiro, que morreu com um talo de mamona no útero ao tentar desesperadamente um aborto.
Foi a nossa bravura que levou a questão do aborto ao Supremo Tribunal Federal, que transformou as ruas de Brasília em uma vigília de oração e festa pelas mulheres. É a nossa ousadia cotidiana que resiste ao movimento conservador no Congresso Nacional, onde padres e pastores trocam a constituição pela bíblia. Mas, como nossas vizinhas argentinas, somos pacientes e iremos esperar para inscrever na história “nem uma a menos” por aborto.
Em nossa fronteira, há esperança. Desde 2006, uma decisão da corte constitucional na Colômbia alterou a lei penal – de um país com uma das leis mais restritivas de aborto no mundo, os juízes autorizaram o aborto em caso de risco de vida, estupro, inviabilidade do feto e se a saúde da mulher estiver em risco.
A Colômbia passou a ser um destino seguro para as mulheres brasileiras e venezuelanas que, como Rebeca Mendes, atravessam a fronteira para realizar o procedimento na legalidade. Por saúde, se entende o bem-estar integral da mulher e não somente risco de morte. Não há crime em Rebeca sair de São Paulo, tomar um avião para Bogotá e ali fazer o aborto. Não há crime em ela contar a sua história publicamente, como já o fez algumas vezes. A mobilidade entre os países só demonstra o quanto a lei penal é pouco razoável e anacrônica para a vida das mulheres.
No Chile, há resiliência. Com o fim da ditadura militar de Pinochet, o aborto foi integralmente criminalizado. Após intensas mobilizações no Congresso Nacional, a lei de aborto aprovada é semelhante ao quadro de despenalização do Brasil: o aborto é permitido em caso de estupro, risco de vida e feto inviável. Para um país conservador, cujos recentes escândalos de pedofilia da Igreja Católica abalaram o poder religioso, a mudança é um sinal da transformação política da região. Houve tentativa de contestação da lei na corte suprema, mas os recursos foram negados e a lei está em vigor. Judiciário e Legislativo se moveram para garantir que a lei penal fosse alterada.
A verdade é que há uma mistura de sentimentos e a onda verde os combina em um revigoramento da luta política regional: se antes falar de aborto nas demandas políticas era uma questão só de mulheres, uma reviravolta ruidosa ocorre na região. A questão do aborto é cada vez mais uma demanda por vida digna, por cidadania e justiça. Se há raiva indignada de longa data, há agora esperança. Por isso, a onda verde cresce e se multiplica fazendo do 28 de setembro um dia de resistência e de celebração. Será mesmo “nem uma a menos” por aborto clandestino.