‘A criminalização do aborto mantém as mulheres em risco’, afirma Debora Diniz

02 de março, 2020

Leia a entrevista com a antropóloga, professora da Universidade de Brasília (UNB) e fundadora da organização Anis Instituto de Bioética, Debora Diniz

(O Tempo/MG, 02/03/2020 – acesse no site de origem)

Em 20 anos, a taxa anual de aborto nas regiões desenvolvidas caiu, principalmente em países onde a prática foi legalizada. O mesmo não ocorreu na América Latina. Uma das principais defensoras da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, Debora teve que sair do Brasil devido à ameaças de morte, e explica porque o país não conseguiu acompanhar esse movimento.

Em 2004, você trouxe à luz uma questão de direitos reprodutivos praticamente desconhecida por quem jamais viveu o drama de gestar um feto sem cérebro: o aborto de anencéfalos. Em 2012 então esse tipo de aborto deixou de ser considerado crime, por decisão do STF. Gostaria que você contasse um pouco de onde vem a sua ligação/identificação com essa temática dos direitos reprodutivos e aborto?
Essa é a vida concreta das mulheres, especialmente na sua juventude, na idade reprodutiva. Quando nós estamos falando que, pelo menos, uma em cada cinco mulheres no Brasil já fez um aborto,  segundo a pesquisa nacional de aborto,  estamos falando de meio milhão de mulheres todos os anos. Estamos falando de alguma mulher que nós conhecemos na vida. Então, não tenho nenhuma história pessoal, mas sim como pesquisadora, a ideia de proximidade passa pela capacidade de escuta, de sensibilidade, de nos aproximarmos do que é a dor da outra e de quais são as forças que cada uma  tem para implementar a mudança.

Você foi a autora do primeiro livro sobre a descoberta da zika no Brasil – venceu a categoria ciências da saúde do Prêmio Jabuti com “Zika: do sertão nordestino à ameaça global” – e nos últimos anos se tornou figura central pelo direito ao aborto até a 12ª semana de gestação. Na sua opinião, quais as principais dificuldades para que o tema avance na legislação brasileira?
A principal dificuldade é que o aborto é um tema que  é usado como uma moeda, como uma questão sensível para provocações políticas. Então, com a emergência do governo Bolsonaro, de todo um campo conservador e autoritário no país, não só as questões de gênero, mas como as questões reprodutivas  vão ao centro de uma controversa moral e se torna uma controversa política. A principal dificuldade eu não nomearia que são as igrejas ou as crenças religiosas. É o uso de uma autoridade moral para perseguir mulheres, para perseguir o campo reprodutivo. Ao se controlar a questão do aborto, estão se controlando a concepção de família, de reprodução social, de mulheres no mundo do trabalho, de direitos a creches, de cuidados com as crianças, de acesso aos métodos (anticoncepcionais)… É um erro colocar o aborto numa uma polarização sobre o campo religioso.

O que aconteceu após a legalização do aborto em países como Portugal, Espanha e Uruguai? 
A descriminalização do aborto  leva a uma redução das taxas dessa prática. Porque junto com a descriminalização você tem um pacote de acesso a informação, de quebra dos estigmas e do tabu. As mulheres passam a falar a verdade quando chegam em um serviço de saúde. Elas não têm medo de serem denunciadas. Com isso, você consegue prevenir se ela sofre violência, se ela não está usando bem o método. A descriminalização reduz o número de abortos. A criminalização não apenas não soluciona, como mantém as mulheres em risco.

Em 20 anos, entre 1990/1994 e 2010/2014, a taxa anual de aborto nas regiões desenvolvidas caiu significativamente, principalmente em países ricos onde a prática é legalizada. O mesmo não ocorreu em países em desenvolvimento. Porque que a América Latina e o Brasil não conseguiram acompanhar o movimento de legalização do aborto no mundo?
O Brasil está na região do mundo em que o aborto é mais criminalizado: na América Latina e o Caribe. E que tem as maiores taxas de aborto. Aqui eu diria que não é só a interferência de uma moral religiosa e do campo moral, mas  de uma composição de uma colonialidade patriarcal, que  é masculina, e de controle de uma ideia de família, e de controle das mulheres. Por isso também nós estamos na região do mundo que mais mata mulheres e são fenômenos que não devem estar separados – controlar a reprodução e controlar o corpo das mulheres e matar as mulheres. Nós estamos numa região do mundo em que mais tipificamos e falamos de feminicídio, então não dá pra separar as coisas. Existe  essa origem da cultura patriarcal e de uma desigualdade de gênero que faz com que nós não acompanhamos uma secularização, uma despatriarcalização sobre o aborto.

Apesar dos extensos debates já travados, a ação pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação ainda não tem data para ser votada no STF.  Você acredita em uma perspectiva de retomada?  
Eu não sou capaz de fazer nenhuma projeção, mas acredito que é uma prioridade para o Estado. Para algumas pessoas pode parecer que não seja, mas eu continuo dizendo que, mais do que nunca, essa é uma prioridade democrática para a corte suprema no Brasil. São direitos individuais violados. Todas as Cortes, como qualquer outra organização, estão imersas de uma cultura política  e que pode haver uma falsa interpretação, uma falsa avaliação de que esse é uma tema intenso demais ou político demais para ser resolvido nesse momento. Eu diria que exatamente por estamos nesse momento que essa é uma ação que deveria ser julgada, considerada procedente e feito uma leitura à luz da constituição do Código Penal. Momentos de crise são momento de reafirmação dos direitos, e de que direitos fundamentais violados não serão autorizados.

Boa parte das entidades que vão se manifestar contra a sua proposta de descriminalização do aborto  é ligada a igrejas. Que peso que esse setor tem? 
A mulher que faz aborto ela é uma mulher comum. Ela tem religião,  tem filhos, tem um companheiro, enfim, é uma mulher comum. É como se você visse na rua mulheres entre 20 a 29 anos, e você contasse 1, 2, 3, 4, 5 e uma delas fez aborto. Aí você imagina: será que ela deveria estar presa?  Ser  favorável ou contrário ao aborto  é um falso enquadramento, porque se o aborto é uma necessidade da vida, de saúde, uma em cada cinco mulheres vão fazer aborto, nós estamos dizendo que essas pessoas são favoráveis a colocar essas mulheres na prisão. Então, essas entidades são entidades que sim falam em nome de organizações religiosas porque é uma autoridade reconhecida dentro de uma frágil laicidade democracia brasileira, mas elas representam  essa tradição patriarcal de controle das mulheres dentro de uma desigualdade de gênero que se inclui também as instituições religiosas, mas não apenas elas. Então as instituições religiosas são porta-vozes, são a materialização de uma estrutura hierárquica e patriarcal que acredita que as mulheres devam se manterem grávidas e exercerem a maternidade, mesmo contra sua vontade, ao ponto de manda-las para a cadeia.

No Twitter você está sempre bem atuante. Você acredita numa retomada da ciência e da educação brasileira? 
Eu jamais desacreditei de que a universidade e a ciência se mantiveram inativos em todo esse processo como esse novo governo. Então a retomada que me parece uma pergunta sob o ponto de vista de um estado formal de políticas públicas. Não sob esse governo. Uma das estratégias desse governo, do governo Bolsonaro é uma ofensiva e uma tentativa de desestabilização das universidades e da ciência porque ele opera pela mentira, ela opera pelo medo e a ciência é o espaço da disputa genuína pelas melhores afirmações sobre verdades, sobre respostas, seguidas de métodos que são transparentes e abertos ao debate público. Então esse governo não só não está aberto ao debate público como não está aberto a seguir as regras de impacto sobre a construções de verdade, por isso que opera pela disseminação do medo, pela mercadoria do medo como uma forma de controle social, de controle político.

Nos últimos anos, a burocracia na ciência e o radicalismo tem provocado uma fuga de cérebros no Brasil. Você foi uma das pesquisadoras que, em 2018, saiu do país devido à ameaças de morte. Atualmente, mora nos Estados Unidos e é pesquisadora do centro de estudos Latino-Americanos e Caribenhos na Brown University. Você ainda espera poder voltar logo a Brasília para retomar a rotina na universidade?
Sim. O meu caso é temporário. Eu não me enquadraria como uma fuga de cérebro. Eu conto que a minha história é uma história em que é um dever de responsabilidade a mim e as pessoas as quais eu tenho a responsabilidade de cuidar com professora. O dever de cuidar é o que me fez sair do Brasil e me afastar da universidade pelas ameaças que eu sofria. Então, eu sofri ameaças graves contra mim, contra a universidade, contra os alunos e aos meus colegas, então na verdade essa é uma estratégia dessa milícia digital de forçar uma fuga de cérebros porque as universidades são os espaços de contestação de resistência e de afirmação do debate público. Então as mídias sociais permitem a construção da participação política mesmo com a operação de expulsão dos indivíduos pela imposição da ameaça e do medo. Então por isso que a minha ação contra o ministro da educação, que me bloqueou nos comentários no Twitter, eu sempre sou respeitosa e era um debate que eu tenho direito a participação política, por isso, que eu abrir uma contestação judicial contra ele, de que um representante do estado, um representante político ele tem direito de ter as suas mídias sociais privados, mas aí ele não vai falar de políticas públicas ou de questões do exercício do cargo ao qual ele representa. Então eu continuo me mantendo ativa no campo da política e isso não existia há 20 anos. Em governos autoritários era um silenciamento dessa fuga de cérebros e agora é uma forma de participação política de outra maneira, eu me mantenho muito mais, talvez tão ou diferentemente ativa do que era enquanto estava aí com a possibilidade de interação digital.

Diante dessas ameaças advogados criam uma rede em sua defesa e estudam oferecer apoio jurídico gratuito a outros ameaçados. Como você avalia toda essa situação extrema na qual cientistas brasileiros estão passando? Você atribui isso a que? 
É uma estratégia porque a ciência ela não se toma por um conjunto de Fake News ou de grupos do WhatsApp como é recentemente essa ameaça do presidente Bolsonaro sobre um ato ao Congresso Nacional. A ciência são humanos, a ciência é o espaço do exercício da dúvida, a vida acadêmica é o espaço em que as regras do que nós chamamos um debate razoável eles são postos, estão o processo é muito mais lento. E aí por isso que operar pelo medo e pela intimidação é estratégia.

Como você acredita que será o papel do Judiciário para a manutenção dos direitos civis? E dos direitos de mulheres?
Eu tenho profunda confiança, ou melhor dizendo, esperança, sobre a independência da unidade do Judiciário nesse momento, não só pelo direito das mulheres e de outras minorias, mas para uma contraposição a abusos do executivo. O Judiciário tem que se manter como um poder independente, um poder especialmente a corte suprema, que tem a responsabilidade de proteção, promoção e defesa da Constituição, então toda a minha atuação no campo do litígio estratégico é não só por eu acreditar que o espaço da Corte é um espaço correto e legítimo para a proteção dos direitos individuais violados, mas também porque faz parte do político com um contrapeso especialmente nos governos autoritários.

Por LITZA MATTOS

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