Os filhos delas. A dor deles

28 de outubro, 2018

Os filhos são delas, as dezenas de mulheres assassinadas em Pernambuco. Mas a dor é deles, dos filhos – crianças, adolescentes ou jovens –, que perderam mães e, muitas vezes, os pais violentamente. É o abandono físico e espiritual dos filhos deixados para trás que representa o lado mais brutal do assassinato de mulheres. E quando o ato de violência é cometido pelo próprio pai, a dor e o estrago são ainda mais dilacerantes. Quase insuportáveis. Não há dúvidas, afirmam psicólogos e aqueles que assumiram o cuidado dos que ficaram. Cássio, 19 anos, sentiu o peso. Abandonou os estudos pouco mais de um mês depois de o pai, enciumado, matar a mãe com sete facadas, em Limoeiro, município do Agreste pernambucano, após 20 anos de casamento. Não suportou seguir, pelo menos por enquanto. Promete retornar à escola ano que vem. O de 14 anos, um dos quatro irmãos, também desistiu. Estava no primeiro ano do ensino médio. Os dois, quase sempre, dão sinais de agitação, de ansiedade. A tristeza está neles. Às vezes, a timidez e a imaturidade a camuflam, mas ela está lá. Basta olhar com cuidado para sentir.

(Jornal do Commercio, 28/10/2018 – acesse no site de origem)

Os meninos, confirma a tia Rosângela da Silva, a nova “mãe” dos sobrinhos, ficaram mais tristes e agitados depois da perda dos pais. Embora a morte de Tatiana Apolônia da Silva, 34, e Cassiano Gonçalves, 39, seja assunto evitado na casa humilde do bairro de Nossa Senhora de Fátima, em Limoeiro, a ausência deles está por toda parte. “A sorte desses meninos é que eles têm família. Tenho feito de tudo para cuidar deles. Sei que minha irmã contava com isso, que acalma a alma dela saber que estou aqui, olhando por eles, colocando para estudar, cobrando, orientando, que nossa mãe, a avó deles, também está. Tem sido difícil, muito difícil, principalmente financeiramente, mas é a nossa missão agora”, desabafa Danda, como a tia é chamada. Mãe de dois adolescentes, Rosângela revela que não esperava, a essa altura da vida, assumir tanta responsabilidade. “Agora é ficar de olho, cuidar para que não se percam na vida”, afirma.

Em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, mais uma ferida aberta pelo assassinato de mulheres que são mães. Alexandra Moura da Silva, 34, não foi morta pelo companheiro ou pai dos filhos – teria sido eliminada como queima de arquivo por ter presenciado um duplo homicídio –, mas deixou sete filhos (cinco meninos e duas meninas) de 5 a 17 anos para trás, sem o aconchego do abraço materno. As meninas, que são as mais novas, de 5 e 7 anos, perguntam pela mãe com frequência. Indagam se ela está no céu mesmo e se as vê de lá. A de cinco anos, acostumada a dormir abraçada à mãe, sonha e chama por ela quase todas as noites. Nos sonhos, conversa com Alexandra. Agora, abraça a avó materna, a comerciante Marluce Moura, que ficou responsável por cinco dos sete netos deixados pela única filha.

“É uma ausência muito, muito sentida. Sofrida demais. Perdi minha única filha e tive que assumir tantos netos. Dois moram com os pais. Mas o restante vivia com a gente. Dependem totalmente de mim. Não têm mais ninguém”, conta Marluce Moura. Como se a perda não fosse suficiente, as duas meninas ainda viram a mãe ser baleada enquanto tentava se proteger do assassino. Até hoje, quando ouvem explosões, ficam assustadas e perguntam, ansiosas, se são tiros. O irmão mais velho, de 17, jogava bola na rua e foi quem socorreu a mãe com a ajuda de um vizinho. Alexandra tinha três tiros na barriga, perna e nádegas. Ainda passou por dois hospitais antes de falecer. O filho nunca toca no assunto. “Evitamos falar sobre a morte dela para que os meninos não sofram ainda mais. E assim vamos levando a vida”, afirma, resignada, a avó.

Levantamento do #UmaPorUma aponta que 49% das mulheres assassinadas em Pernambuco de janeiro a setembro de 2018 deixaram filhos. Eram 89 mães. E esse número pode ser ainda maior, já que em 36% dos casos investigados pelo projeto, nos nove primeiros meses deste ano, não há informações se as vítimas eram mães. O assassinato de Maria Lucivânia da Silva, 35, carrega uma dupla tragédia. Grávida de três meses, foi morta pelo próprio filho, um jovem de 19 anos. Fazia três meses que o rapaz tinha ido morar com a mãe, no distrito de Lage Grande, em Catende, na Mata Sul de Pernambuco, fugindo da perseguição de traficantes. Lucivânia deu abrigo ao filho. Mas, em meio a uma discussão, o rapaz atirou na mãe e a atingiu com vários tiros no tórax e no abdômen. Era o mais velho. Lucivânia deixou outros dois filhos, adolescentes.

Não há lugar para o ódio entre os filhos de Tatiana e Cassiano. Os quatro perdoaram o pai, apesar de ele ter assassinado a mãe com sete facadas

MARCAS PARA A VIDA

Além da dor e da ausência, a perda da mãe, assassinada ou não pelo pai, deixa marcas nos filhos para o resto da vida. Em alguns, as sequelas são maiores do que em outros, mas em todos fica algo permanente, guardado nas emoções, prestes a explodir a qualquer momento. A psicologia ajuda a compreender esse processo de transformação.

“Os filhos são, sem dúvida, os grandes reféns da violência contra a mulher, da violência intrafamiliar. O assassinato de mulheres é terrível e a sociedade precisa combatê-lo de todas as formas. Mas essas mortes, em qualquer circunstância, será muito pior para os filhos. É uma receita que sempre dará errado. Crianças e adolescentes expostos a situações traumáticas muito provavelmente terão um potencial maior de adoecimento psíquico na vida adulta. A situação de trauma pode gerar alterações no funcionamento do cérebro, inclusive anatômicas. E isso pode acontecer em pouco tempo ou com os anos, já na vida adulta. Vai depender de cada um”, explica a psicóloga clínica Luciana Gropo.

Na avaliação da profissional, ter a mãe assassinada é um trauma semelhante ao suicídio em família. Extremamente marcante e traumático. Por isso, o recomeço é difícil e está condicionado à capacidade de superação dos familiares que ficaram em volta desses filhos. Principalmente se eles já viviam expostos a relações paternais de agressividade. “O futuro emocional dessas crianças e adolescentes vai depender da aceitação da sociedade, do afeto com que esses filhos serão criados, do apoio que terão da família que ficou. O papel desses parentes é fundamental. Assim como o acompanhamento psicológico imediato”, ensina.

Segundo Luciana Gropo, a queda no desempenho escolar, como observado nas histórias aqui registradas, é uma das consequências imediatas da perda sofrida. “Diante de uma situação de trauma, as crianças tendem a ficar menos atentas e a aumentar o nível de ansiedade. E a ansiedade aumenta a falta de atenção”, diz.

Nos casos da violência praticada pelo próprio pai, a gravidade é ainda maior, podendo gerar, inclusive, a negação da potencialidade do crime. Ao JC, três dos quatro filhos de Tatiana Apolônia afirmaram não ter raiva do pai, mesmo a mãe tendo sido assassinada com sete facadas, tendo lutado para viver, inclusive clamado por socorro enquanto era agredida. Todos os filhos o perdoam. Disseram que compreendiam o que tinha feito porque estava doente. A doença a que se referem seria uma depressão provocada pelo boato de que a companheira teria um caso extraconjugal. “Não tenho raiva de painho. Ele estava muito triste, doente. Por isso fez aquilo com mainha”, diz o caçula dos irmãos, de 9 anos.

Luciana Gropo observa que a negação é outra reação natural, esperada. “É como se culpar o pai fosse perdê-lo também. Eles pensam: já perdi minha mãe, não vou perder meu pai também. Além disso, com certeza pesa a criação machista que tiveram. Muitos entendem ou são levados a entender que o pai matou a mãe por amor”, diz a psicóloga.

Roberta Soares

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