Em sua nova coluna, Debora Diniz comenta o depoimento da atriz sobre seu turbulento casamento com Sérgio Schiller Thompson-Flores
(Marie Claire, 21/11/2018 – acesse no site de origem)
Se serve a confissão, não sabia que Cristiane Machado era atriz global. Seu rosto foi a inspiração de Vik Muniz em uma escultura para a abertura da novela Passione, em 2010. Mas mesmo que soubesse que era uma atriz, jamais me confundiria nas imagens que assisti como minutos de horrores no programa “Fantástico”, da TV Globo, deste domingo. Eram cenas em que Cristiane apanhava, era enforcada, surrada, amarrada com um fio de telefone, escorraçada com um cinturão. A imagem do cinturão me fez lembrar a fúria dos patriarcas do passado com os escravos ou as crianças: Sérgio Schiller Thompson-Flores, o príncipe do conto de fadas, sem afastar os olhos da vítima, retira o cinto de uma calça e o enrola entre os dedos como se fosse um cangaceiro impiedoso.
Como outras mulheres, Cristiane passou a filmar as torturas domésticas para provar que era vítima de violência. Instalou câmeras escondidas no quarto, depois esperou. Enquanto assistia as cenas de tortura não pensei em nada além do que o medo que essa mulher sentia. Tive algum alívio, é verdade. Eu sabia que ela estava viva, pois era quem narrava sua própria história como de outra vítima. Passei a imaginar como foram os dias em que planejou as câmeras e esperou a surra. Quantos dias esperou? Será que dormiu? Com quem será que compartilhou seu plano, o que disse a quem instalou as câmeras em seu quarto? A surra chegou, e foi mais de uma vez. Ela foi à polícia, ele foi proibido de se aproximar dela. Chegou a ser preso. Como outras histórias de desamor, os dois retornaram, houve pedidos de desculpas.
Assistimos como em um conto de fadas sem final feliz o casamento da princesa, o noivo emocionado a esperando no altar. A extensão do véu que cobria a nave da igreja era do tamanho do segredo que já guardava no dia do casamento – Cristiane já sofria violência antes mesmo de casar-se. O “Fantástico”, antecipando a pergunta dos indiscretos, a questionou como pôde ter se casado com alguém que a espancava. A resposta foi tão banal quanto é a verdade da intimidade: porque os convites já haviam sido distribuídos, a festa já marcada, havia um projeto de felicidade familiar em curso. Ela precisava acreditar que o vivido era passado e o sonho seria a realidade da vida familiar.
Não foi. Cristiane não morreu, mas ainda pode vir a ser uma vítima de feminicídio. É uma exilada na própria casa, pois o ex-diplomata, homem de negócios e o príncipe da fantasia, está foragido. Como outros agressores, Sérgio a ameaçava de morte e a qualquer momento pode vir honrar o prometido. Desconheço as razões pessoais de Cristiane ter contado seu segredo em cadeia nacional, não mais como representando um papel, mas fazendo de sua vida o roteiro da tragédia. Eu imagino uma razão que me oferece admiração por ela: sua história de violência não será mais a de um sofrimento privado e escondido, mas compartilhado com todos nós que assistimos aos horrores da tortura doméstica. Ela não pode morrer; é agora a voz da fuga. Por isso, não será um número da estatística de feminicídio, mas uma história da sobrevivência.
Leia também: Atriz agredida por ex-diplomata: ‘que medida protetiva é essa que ninguém me protege?’ (O Globo, 21/11/2018)