Cabe discutir se a imprensa está interessada e preparada para investigar com independência
(Folha de S.Paulo, 16/12/2018 – acesse no site de origem)
Mais de 300 mulheres se apresentaram, na última semana, para formular acusações de abuso sexual e estupro contra o médium João de Deus, uma celebridade internacional. As primeiras vítimas foram ouvidas pelo programa Conversa com Bial, da TV Globo, e pelo jornal O Globo, que apresentaram depoimentos de quase uma dezena de mulheres.
Em seguida, todos os órgãos de imprensa localizaram e ouviram novas vítimas e mulheres se manifestaram em delegacias pelo país afora, numa avalanche que arrastou a própria família do médium, cuja filha relatou anos de abuso.
Um comportamento violento que parece ter se repetido impunemente perdurou anos e anos, sobrevivendo a uma série de reportagens laudatórias a um homem que se diz com poder de cura. Tudo nesse caso parece espetacular.
Após acusações contra outro líder espiritual, o dito guru Siri Prem Baba, uma holandesa deu seu depoimento em redes privadas de grupos feministas. Passaram-se seis meses até que fosse publicado. É tempo demais, indício de que tais acusações costumam ser descartadas de antemão, por razões jornalísticas, jurídicas e possivelmente morais.
Cabe discutir aqui se a imprensa está preparada, interessada e se tem ferramentas para investigar de forma independente esse tipo de crime, no limite da intimidade de agressores e vítimas.
O tema da violência contra mulheres já ocupou este espaço outras vezes. Volto a ele porque tenho a impressão de que a Folha não parece antenada, empenhada e mobilizada para entender quão necessárias e relevantes são as investigações que desnudem a violência de gênero. São processos delicados, que causam melindres nas estruturas de poder, também na que gere as Redações.
A Folha foi o primeiro jornal a publicar relatos de vítimas do médico Roger Abdelmassih, em 2009. A reportagem não foi editada na capa do caderno nem tinha chamada na primeira página. Tal precaução e discrição revela como denúncias de violência sexual enfrentam barreiras seletivas infinitamente maiores do que, por exemplo, as de corrupção.
Publicam-se longos relatos de delações premiadas, muitas das quais baseadas em inferências e em reprodução de conversas de terceiros. Nos casos de assédio, o relato de vítimas é tratado com desconfiança máxima, exigindo provas concretas, como se a maioria dos crimes sexuais pudesse ser (e tivesse de ser) atestada por meio de exames médicos e perícias científicas. A realidade mostra que não é assim.
Claro que sempre defenderei o farto e amplo direito de defesa dos acusados, além do rigor técnico e da responsabilidade ao publicar. Manifestei à Redação a necessidade de dar voz a João de Deus para que se explique e se defenda, além de lembrar que o trabalho benemerente que fez a milhares de pessoas, que assim o relataram em público, não merece nem deve ser ignorado.
O jornal precisa investir em normas institucionais para municiar e amparar repórteres que investiguem acusações de assédio. Existem manuais que orientam como abordar, tratar e proteger vítimas de abuso sexual, evitando que a imprensa seja uma barreira a mais no tecido social contra a revelação de casos desse tipo.
Desacreditar a vítima, obrigá-la a exposição pública que pode ser vexaminosa, levá-la a abrir mão da proteção de sua identidade para que seu relato tenha credibilidade, esses são, por exemplo, pontos condenados por especialistas internacionais na apuração de reportagens sobre crimes sexuais.
Para o secretário de Redação da Folha, Vinícius Mota, “são trabalhos difíceis, porque envolvem acusações criminais graves, capazes de destruir reputações independentemente da sua solidez, em fases às vezes distantes da conclusão judicial”. Defende que sejam redobrados os cuidados com a aplicação da boa técnica jornalística e com a exposição da apuração ao contraditório.
Nas resoluções para 2019, a Folha deveria criar uma força-tarefa para investigar abusos de poder e crimes sexuais. Qualificado por meio de cursos, debates e relatos de experiências anteriores, esse núcleo seria capacitado a manejar adequadamente as ferramentas investigativas específicas.
Quantos criminosos sexuais em série existem nos diversos níveis de poder, agindo impunemente?
Quantos são os relatos que, ouvidos em rodinhas de jornalistas, replicam histórias de abusos nas castas políticas, empresariais e culturais e não chegam ao distinto público nem viram inquéritos?
Os ocupantes do poder —e a sociedade de forma mais ampla— tendem a ser conservadores, machistas e coniventes com práticas abusivas contra mulheres. É uma pauta vista como delicada, em que a imprensa de modo geral, ainda opta pelo manto do silêncio em nome da privacidade e da proteção da honra. Acaba sendo, se não cúmplice, ao menos pouco vigilante e descuidada.
Paula Cesarino Costa é jornalista, foi Secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. É ombudsman da Folha desde abril de 2016.