Em sua coluna, a antropóloga defende que o feminismo deve proteger e lutar pelos direitos de todas as mulheres. “Talvez, você nunca venha a fazer um aborto, mas como uma feminista você saberá acolher mulheres com experiências diferentes das suas. E, principalmente, você jamais defenderá cadeia ou castigo para mulheres que fizerem um aborto”
(Marie Claire, 30/01/2019 – acesse no site de origem)
Eu sou uma feminista. Houve um tempo em que estranhei essa palavra sobre mim mesma. É como se “feminismo” fosse exagerado para uma acadêmica ou como se colocasse em dúvida minha credibilidade como pesquisadora. Passada essa fase breve de suspeição ideológica lançada por meus colegas que se falseiam cientistas neutros, passei a tomar o feminismo como uma forma de vida – não é mais um qualificador de quem sou; sou eu mesma. Até os que não gostam do que escrevo já assim me descrevem: a “antropóloga feminista”.
Você pode ser feminista de qualquer causa – violência contra a mulher, meio-ambiente, racismo, deficiência, saúde reprodutiva. Não importa como você defina o feminismo, se como uma luta política, como uma ideologia ou como uma ética. Como para mim é uma forma de vida, escrevo e falo de tudo que diga respeito à vida das mulheres: de violência doméstica à exploração sexual de meninas, de igualdade no mundo do trabalho à descriminalização do aborto. Você pode ser uma feminista religiosa ou astróloga, ateia ou mística – só não pode querer que suas crenças sobre o bem-viver devam ser a pauta moral do feminismo. Por isso, não há isso de feminista “contra o aborto”. Há uma contradição de valores nessas duas afirmações sobre si mesma. Ou você é feminista e acredita que cada mulher deva decidir sobre sua própria vida, ou você não é uma feminista.
Eu sinto muito se você não for uma feminista – o mundo seria melhor com muitos homens e mulheres feministas. Na Suécia, há um governo feminista; no Canadá, um primeiro-ministro comprometido com a justiça de gênero. Enquanto vivermos em um país sob o ministério da família, as urgências feministas serão muitas – uma delas é a descriminalização do aborto. Você pode se unir ao movimento pela descriminalização do aborto de duas maneiras: sendo alguém falante como eu sobre as injustiças da política criminal, ou simplesmente seguindo sua própria causa feminista, porém sendo solidária à nossa causa. Serei explícita em minha mensagem: não há como ser uma feminista e defender a cadeia como o destino das mulheres que façam aborto, ou seja, ser “contra o aborto”.
Não me acuse de ser aqui a fiscal do feminismo: gritar essa besteira é fazer muito barulho e pensar pouco. É mais sofisticado o que proponho como regra básica de convivência em nossa diversa comunidade de feministas. Você é livre para colorir o feminismo como bem desejar: feminismo negro, feminismo indígena, feminismo de mulheres ribeirinhas nordestinas, feminismo trans, feminismo evangélico. Nossa riqueza está na complexidade do que passamos a chamar de interseccionalidade – não somos corpos monolíticos como querem nos fazer crer pela sexagem binária, somos corpos que vivem experiências diversas pela cor, classe social, região, idade ou crença. Você só não será bem acolhida na ampla comunidade feminista se suas crenças restringirem os direitos de outras mulheres: por isso, não há feminismo homofóbico ou feminismo racista. Da mesma forma, não há feminista “contra o aborto”.
Falo “contra” ou “favor” do aborto apenas para simplificar nossa conversa. Aborto não é tema para isso de um lado ou outro da verdade – é uma escolha íntima e privada de cada mulher. Talvez, você nunca venha a fazer um aborto, mas como uma feminista você saberá acolher mulheres com experiências diferentes das suas. E, principalmente, você jamais defenderá cadeia ou castigo para mulheres que fizerem um aborto. É por isso que não há feministas contra o aborto – não há feministas que não reconheçam o direito de cada mulher de decidir sobre seu próprio destino de quando, como ou com quem exercerá a maternidade.
Debora Diniz é antropóloga, professora da UNB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética. Em 2017, ganhou o prêmio Jabuti pelo livro “Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global”. Como documentarista, seus filmes já ganharam mais de 50 prêmios. Sua área de interesse são os direitos das mulheres.