Se é preciso ouvir antes de falar, é também nosso dever falar com responsabilidade sobre as injustiças que assolam as mulheres e meninas
(El País, 02/03/2019 – acesse no site de origem)
Não há homem universal que represente as lutas de direitos humanos, assim como não há “mulher universal” para o feminismo. Quanto mais rica a nossa diversidade, maior a multiplicidade de identificações. É importante termos movimentos de mulheres rurais, deficientes, indígenas, negras, afro-latinas, migrantes, e tantos quantos forem necessários para representar formas de desamparo impostas pelas políticas da vida classistas, racistas e patriarcais. Em regiões de extrema desigualdade, como é o caso da América Latina e do Caribe, as vulnerabilidades das mulheres e das meninas se complexificam. Uma menina indígena em nomadismo involuntário pela crise humanitária na Venezuela carrega camadas de fragilidade existencial: da condição étnica à idade, da migração ao risco de violência.
Quem fala por essa menina? As organizações internacionais humanitárias ou as políticas governamentais do país que a acolhe? Sua comunidade indígena ou sua família? Nós começaríamos respondendo que ela deve ser a primeira a falar, caso seja capaz de expressar algumas de suas necessidades mais imediatas a serem protegidas. Nosso dever é ouvi-la, reconhecendo-a como o centro de nossos esforços de proteção. Mas há muito o que ela desconhece. Como uma menina desamparada, é uma sobrevivente —t alvez, sua vida tenha sido uma sequência de espoliação de direitos, fazendo-a ignorar o que seja uma vida digna. Somente ouvi-la é novamente abandoná-la. É preciso estar ao seu lado para falar junto com ela sobre o que é ser uma menina em nomadismo involuntário em crise humanitária, porém com direitos a serem garantidos.
Falar com essa menina, e não apenas por ela ou sobre ela, é o primeiro passo para a consolidação de uma solidariedade feminista. Mas não é suficiente. Desde que Gayatri Spivak lançou a pergunta “pode o subalterno falar?”, discussões sobre os rituais de fala de populações vulneráveis, em particular as mulheres, inundaram o feminismo acadêmico e os movimentos sociais. A expressão “lugar de fala”, comum ao feminismo latino-americano, é tanto um reclame de reconhecimento de vozes subalternizadas, como também um convite ao silêncio conivente das elites. Como nós, duas mulheres latinas originárias de países dentre os mais ricos da região, poderíamos falar de crise humanitária na Venezuela ou no Haiti? Nosso lugar de fala é ambíguo — não vivemos o nomadismo, o conhecemos porque decidimos ir ao encontro dessa menina e nomear como injusta sua situação de vida. Mas qual nossa autoridade para falar com ela e sobre ela?
Se é preciso ouvir antes de falar, é também nosso dever falar com responsabilidade sobre as injustiças que assolam as mulheres e meninas. O silêncio sobre as desigualdades e vulnerabilidades experimentadas por aquelas distantes de nós é cúmplice da desigualdade. Só quem vive a tranquilidade dos direitos protegidos ou dos privilégios herdados pode se confortar na apatia do silêncio. A autoridade da experiência ou da existência são formas de reconhecimento das narrativas políticas que importam às lutas pela igualdade, mas não são as únicas. As mulheres com deficiência devem ser ouvidas em políticas de saúde sobre seus corpos, devem ser parte dos movimentos de luta pela descriminalização do aborto, devem estar em igualdade de condições às mulheres sem deficiência em todas as esferas da vida. Isso não significa, no entanto, que mulheres sem deficiência devam se silenciar sobre as violações de direitos vividas pelas mulheres cegas ou surdas, por não compartilharem biografias semelhantes.
Nossos rituais de fala e de escuta precisam ser diversos. Só que a diversidade não é suficiente para a garantia da justiça. É possível compor rituais de fala que se adequem ao mandado da diversidade sem que se alterem os regimes de desigualdade em que vivem as mulheres. Este é o pêndulo que precisamos mover com delicadeza — ouvir antes de falar, reconhecer a anterioridade do vivido nos rituais de fala, e não permitir que a fórmula da representatividade como autoridade silencie quem se conforta nos privilégios. É a ética da solidariedade feminista o que nos aproxima dessa menina para ouvi-la, mas também para ajudá-la a entender que o desamparo não é um destino.
Debora Diniz é antropóloga brasileira e pesquisadora da Universidade de Brasília e Brown University
Giselle Carino é cientista política argentina, diretora da International Planned Parenthood Federation/Western Hemisphere