Para deputada e cientista política, atacar a autonomia e os direitos das mulheres é fundamental para que o governo vingue
(CartaCapital, 06/04/2019 – acesse no site de origem)
A política brasileira é uma espécie de triturador de boas ideias. Tudo, ou quase tudo, o que cai ali vira uma pasta débil. Decisões têm sido tomadas conforme as promessas eleitorais de Jair Bolsonaro e diretrizes para erradicar a “ideologia de gênero” e impor restrições ao direito ao aborto estão a todo vapor.
Na última semana de março, deputados relançaram a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, que conta, de saída, com 250 assinaturas. O estatuto da frente, criada originalmente em 2015, foi escrito na época por Damares Alves, atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Presidida pelo deputado Diogo Garcia, do Podemos, as prioridades da frente serão: incentivar mulher a não abortar (estatuto do nascituro), defender a vida do feto em todos casos (mesmo em casos de anencefalia), ou em caso de risco de morte da gestante (PEC da Vida).
Ao propor o projeto, os deputados parecem ignorar, para dizer o mínimo, que no Brasil, segundo dados do Fórum de Segurança Pública, uma mulher estuprada a cada nove minutos, sendo que os abusos ocorrem, em maioria, contra menores de idade, dentro de casa e por pessoas conhecidas da família.
Segundo a deputada federal Sâmia Bomfim, do PSOL, embora a bancada evangélica esteja desarticulada para outros projetos, as pautas relacionadas a moral e aos costumes, os unifica, e a Frente pode representar um enorme retrocesso à saúde sexual e reprodutiva das mulheres.
“A oposição tem um grande desafio pela frente. Teremos de fazer uma vigilância combativa, e os movimentos sociais, de mulheres, precisam disputar esses valores na sociedade, mostrar que eles nos enxergam como meras reprodutoras, e que por traz disso existe um ódio às mulheres”, afirma.
Nesta terça-feira 2 a deputada esperava argumentar com a ministra porque o Brasil criticou, na ONU, o acesso de meninas e mulheres a informação e serviços de saúde sexual e reprodutiva públicos. Isso porque, no último mês, na sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres em Nova York – principal encontro das Nações Unidas sobre direitos femininos – um texto lido por representantes do governo brasileiro fez críticas ao rascunho das conclusões do encontro.
A razão central da objeção foi a menção ao direito de acesso universal a serviços de saúde reprodutiva e sexual, que inclui o acesso à contracepção, à informação e ao planejamento familiar. Para representantes do governo brasileiro, trata-se de algo que pode dar margem à “promoção do aborto”. No fim, o governo brasileiro aprovou as conclusões.
Em audiência pública na Câmara, a deputada questionou o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, a respeito do posicionamento do Brasil na comissão. Araújo reafirmou que o tema dos direitos sexuais e reprodutivos trazia “no contrabando, a promoção do aborto – coisa que é contra a legislação brasileira”.
O texto lido pela representação brasileira durante o debate em nova York diz que o país defendia a “necessidade de proteger a mulher durante a gravidez e de proteger a vida intrauterina de mulheres e homens”.
A palavra aborto não consta do texto final. Um item expressa preocupação à falta de acesso à saúde, incluindo reprodutiva, das mulheres que vivem no meio rural. O texto final também reconhece o direito das mulheres de “ter controle e decidir de maneira livre e responsável sobre todas as questões ligadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência, como contribuição para a conquista da igualdade de gênero, seu empoderamento e efetivação de seus direitos humanos”.
Para a deputada, a obsessão do governo em restringir ainda mais as possibilidades de aborto está diretamente ligada a um tipo próprio de projeto de poder. “A mulher livre, plena em seus direitos, empoderada, que vai à luta e controla sua própria vida, é o oposto desse governo. Para que o governo vingue, é fundamental para eles tirar a autonomia das mulheres.”
Governo antifeminino
A cientista política Sonia Correa lembra que já na cerimônia de posse, o presidente prometeu combater “a ideologia de gênero” e, antes disso, nomeou três ministros que têm essa mesma visão para áreas estratégicas: Relações Exteriores, Educação e o Mulher, Família e Direitos Humanos.
Dois meses mais tarde, em sua estreia na cena internacional, na 40a Sessão no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Damares afirmou que defenderá “o pleno exercício por todos do direito à vida desde a concepção e à segurança da pessoa”.
Isto significa criminalizar o aborto em todas as situações, inclusive nas já permitidas pela lei hoje. “A ministra apenas escancarou ao mundo o desprezo do atual governo pelos acordos multilaterais, em alinhamento com a política trumpista”, afirma Sonia.
Ela diz que o grau de autonomia das mulheres, o que passa imprescindivelmente pela escolha de ser ou não ser mãe, indica a saúde de uma democracia. “Se as mulheres são privadas do exercício de sua cidadania, não sendo consideradas em igual dignidade com os homens, não temos um sistema democrático pleno, e é isso que esse governo quer.”
A disputa em torno da questão do aborto já se manifestou, com força, antes das posições expressas pela ministra em Genebra, após o vice-presidente, General Mourão, declarar, no início de fevereiro, que, pessoalmente, defende a interrupção da gravidez como uma escolha pessoal.
No final de fevereiro, após esses eventos, a cientista política Ilona Szabó foi desconvidada, a pedido do presidente, a ocupar posto de suplente no Conselho de Política Criminal e Penitenciária. A alegação inicial apontava para suas posições liberais na questão das drogas e sua oposição à flexibilização da posse de armas. Semanas depois, foi noticiado que a posição de Szabó favorável à descriminalização do aborto foi a causa principal.