Como uma jornalista virou cidadã de segunda classe na Índia

25 de abril, 2019

Ela relata a perseguição que sofre hoje após denunciar o tratamento desumano dado à comunidade muçulmana no país

(Época, 25/04/2019 – acesse no site de origem)

Nasci no norte da Índia com apenas 800 gramas e tive de passar um tempo na incubadora. Todos diziam que eu não sobreviveria. Meus pais me levaram para Mumbai, onde cresci. Em 1993, quando eu tinha 9 anos, conflitos estouraram na Índia. Como éramos a única família muçulmana no bairro, ouvimos boatos de que eu e minha irmã seríamos atacadas pelas gangues. Fomos levadas no meio da madrugada para um lugar seguro e passamos meses ali, sem saber se nossa família voltaria para casa a salvo. Acho que foi a primeira vez que me dei conta de que eu era muçulmana.

Fui uma criança fraca porque tive poliomielite aos 5 anos, e minha mão esquerda e minha perna direita não funcionavam bem. Cresci com esse complexo de inferioridade, de que não era boa o suficiente, de que ninguém iria querer brincar comigo porque eu era aleijada. Depois que os conflitos começaram, nos mudamos para um bairro muçulmano. Na escola havia uma grande segregação entre hindus e muçulmanos, e eu não tinha amigos, porque ninguém queria ser amigo da menina muçulmana. Eu chorava para não ir para a escola. Minha mãe me forçava. Eu era muito tímida e tinha medo de homens. Foi assim na escola, na faculdade, na pós-graduação.

Novos conflitos eclodiram em 2002, quando eu tinha 19 anos. Estava vendo pela televisão e pensei: “Droga. Preciso fazer alguma coisa”. Menti para meus pais e fui trabalhar como voluntária nos campos de refugiados onde os muçulmanos ficavam. Fingi ser hindu, indo de um campo a outro, e aí entendi o que significava ser um muçulmano na Índia. Foi também quando descobri que queria ser jornalista. Era tão chocante estar ali, vendo as atrocidades diante de meus olhos. Queria mostrar para as pessoas os crimes contra os muçulmanos. É como nos Estados Unidos, onde os afro-americanos começaram a dizer “vidas negras importam” quando crimes eram cometidos contra eles. Na Índia, “vidas muçulmanas também importam”. Senti que a única saída para mim era fazer jornalismo.

É atroz ser muçulmano na Índia nos dias de hoje. Os muçulmanos são linchados nas ruas, inclusive crianças, por suspeita de comer carne ou por exibir uma barba. Nunca fomos realmente aceitos como indianos, há um sentimento majoritário de que todos os muçulmanos pertencem ao Paquistão. Nunca fomos vistos pelo que nós somos, mas por nossa religião. Como se não merecêssemos direitos iguais. Tudo isso aumentou no governo de Narendra Modi, nos últimos cinco anos. Por isso, muitos de nós temos levantado nossas vozes. Tenho escrito textos sobre o que significa ser muçulmano na Índia.

“‘OS MUÇULMANOS SÃO LINCHADOS NAS RUAS, INCLUSIVE CRIANÇAS, POR SUSPEITA DE COMER CARNE OU POR EXIBIR UMA BARBA. NUNCA FOMOS REALMENTE ACEITOS COMO INDIANOS’”

Há poucos dias, o primeiro-ministro indicou para as atuais eleições um candidato que é acusado no tribunal de matar 50 muçulmanos em um atentado a bomba. A situação na Índia atual é esta: se você mata muçulmanos, pode se candidatar. Somos hoje considerados cidadãos de segunda classe, especialmente se você é mulher, muçulmana e tem sua própria voz. Eu me sinto como se eles dissessem: “Como você ousa falar sendo mulher, muçulmana e contrária ao governo?”.

Em 2010, decidi me disfarçar. Coloquei oito câmeras ocultas em meu corpo e usei um nome diferente, hindu. Usei a identidade de uma estudante de cinema americana, fingindo que odiava muçulmanos, e fui para o estado de Gujarat, onde os conflitos de 2002 aconteceram quando Modi era governador. Em oito meses de investigação, como infiltrada, indo de ministério em ministério, ficando amiga dos funcionários importantes do governo como se eu fosse parte da família deles, consegui descobrir como o governo de Modi permitiu que muçulmanos fossem mortos, como o próprio governo permitiu que o ministro do Interior do Estado fosse morto.

Quando voltei, meu editor decidiu não publicar a história, mesmo tendo um contrato para a publicação do livro, porque achou que Modi fecharia sua empresa. Contatei todos os jornais do país para tentar publicar e não consegui. Comecei a ter crises de ansiedade, e meu psiquiatra disse: “Você precisa tirar isso de seu sistema”. Peguei um empréstimo e publiquei 500 cópias do livro Gujarat files: anatomy of a cover up ( Arquivos de Gujarat: anatomia de um encobrimento , em tradução livre). Fiz um lançamento em uma livraria em Nova Delhi, estavam lá todos os políticos, e fui ovacionada de pé. No dia seguinte, nenhum jornal publicou uma linha sequer. As pessoas estavam com medo. Como o conteúdo era muito forte, a notícia começou a se espalhar, e fui a escolas e a universidades para falar do livro. Vendi 500 mil cópias e fui traduzida em 17 idiomas.

Por causa do livro, eles transformaram minha vida em uma desgraça. O governo grampeou o telefone de minha casa, da casa de membros de minha família. Tudo piorou no ano passado, quando ganhei um prêmio do Outlook Social Media Awards como ícone jovem do ano. Colaram uma imagem minha borrada em um vídeo pornô, que circulou em toda a Índia. Depois divulgaram meu telefone e meu endereço nas redes sociais. Começaram a espalhar tuítes falsos em meu nome, como se eu tivesse dito que apoiava o estupro em nome do Islã. Eu recebia imagens capturadas do vídeo pornô a cada minuto em meu celular, de pessoas perguntando se eu queria fazer sexo com elas. Foi assim que eles agiram para tentar me humilhar.

Quando o vídeo apareceu, passei três dias no hospital, com crises de ansiedade e palpitações. Quando finalmente tive coragem de ir à polícia denunciar a montagem, os agentes viram o vídeo e começaram a rir de mim. Mesmo levando todas as provas do que fizeram comigo na internet, nenhuma justiça foi feita até agora. Acho que não vai acontecer nada, porque as pessoas continuam compartilhando o vídeo pornô, inclusive alguns políticos na Índia. Como esperar justiça assim?

Eu recebia ameaças de morte em meu telefone. Quando denunciei essas ameaças ao governo, me ofereceram uma licença para porte de armas, mas não é isso que quero. Eu quero segurança, mas esse governo não me dá isso. No ano passado, a ONU pediu pela primeira vez que o governo me protegesse, mas nada aconteceu, o governo nem sequer comentou o pedido.

Acho que isso tudo aconteceu porque eu continuo expondo o governo todos os dias com minha investigação. Quanto mais eu falo sobre as mortes de muçulmanos, quanto mais eu falo do ódio contra os muçulmanos neste país, mais sou perseguida na internet. Mas eu sou jornalista, eu tenho uma voz, e esse é o trabalho que eu faço. Escolhi essa profissão porque queria mudar as coisas. Eles podem achar que estão me assustando, mas não estão.

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