Maria Camargo, roteirista e autora da série ‘Assédio’ da Globo, leva para a televisão aberta as histórias das mulheres vítimas do médico Roger Abdelmassih
(El País, 04/05/2019 – acesse no site de origem)
Qual é o valor da palavra? Esse foi um dos principais questionamentos que fizeram a roteirista Maria Camargo escrever as histórias de mulheres que foram vítimas de abusos sexuais cometidos por um médico renomado. Inspirada no livro A Clínica – a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih, de Vicente Vilardaga, ela escreveu a série Assédio, a primeira série da Globo desenvolvida exclusivamente para a plataforma digital da emissora —onde começou a ser exibida há sete meses— e que estreia na televisão aberta nesta sexta-feira (03/05), com o total de 10 episódios. “Eu conhecia a história do ‘médico monstro’ que estuprou não sei quantas pacientes, mas sabia muito pouco sobre essas mulheres, só tinha lido alguns depoimentos. Quando li a contracapa do livro, intui que elas tiveram uma participação muito forte na condenação dele e percebi que essa história me interessava, a história das mulheres que foram além desse papel de vítimas”, conta Camargo em entrevista a EL PAÍS.
“Nos casos de crimes de cunho sexual, é uma constante o argumento de ‘é minha palavra contra a sua’. Mas quando você tem diversas mulheres contando a mesma coisa, esse relato ganha outra forma. E, hoje em dia, o relato tem, sim, muitas vezes, o valor de prova”, continua a autora. Roger Abdelmassih, de 75 anos, especialista em reprodução humana e um dos pioneiros da fertilização em laboratório no país, foi preso e condenado a 181 anos de prisão por abusar sexualmente de suas pacientes enquanto elas estavam sob efeito de sedativo. A primeira que o denunciou contou sua história em 2009, mas só teve o registro cassado em 2011.
Camargo não queria fazer uma obra sobre um estuprador serial, mas sim sobre o simbólico dessa violência. O projeto, que nasceu dois anos antes de que o movimento #MeToo colocasse os abusos sexuais em debate no âmbito internacional, reflete sobre o mundo em que as agressões contra as mulheres sempre foram toleradas, e sobre as mudanças que começam a transformar a sociedade. “Pensei muito no que quer dizer um mundo e um país onde um homem conseguiu durante tantos anos cometer essa violência com tantas mulheres, com tantas pessoas circulando por ali, sem ter sido incomodado. Como se permite que uma coisa dessas aconteça?”, pergunta-se Camargo. E ela mesma se dá a resposta: “Não se trata apenas do que acontece dentro do consultório de um ‘médico monstro’. Essa é uma história do extremo, mas, para chegarmos até esse ponto, há uma permissividade que permeia tudo. Só acontece o estupro porque o assédio é permitido. É uma questão cultural”. Daí vem o título da série estrelada por um elenco que conta com Antônio Calloni (como o médico Roger Sadala), Adriana Esteves, Paolla Oliveira e outros estrelas da dramaturgia brasileira.
Maria Camargo começou a carreira na Globo como roteirista no programa policial Linha Direta, em 1999 e ficou “muito impactada” ao perceber que cerca de 90% dos casos que chegavam à redação eram de feminicídios. Resgatou parte desse choque para escrever Assédio e apresentá-la à emissora. O projeto foi imediatamente aprovado. “Há 20 ou 10 anos seria impossível fazer esse trabalho. Não só o assunto em si está em pauta agora, como também a reação a ele, essa coisa de dizer que tudo é mimimi, que há exageros, que tudo agora é assédio. Estamos muito longe de melhorar realmente. As taxas de feminicídio só crescem. Mas, ao mesmo tempo, se fala mais sobre isso, mais mulheres denunciam. Acho que conseguir fazer uma série de alcance nacional sobre o assunto já é um passinho adiante”, diz ela.
Dramaturgia
A roteirista já havia atravessado antes o limbo entre ficção e realidade. Em 2015, ela escreveu o roteiro de Nise: o coração da loucura, a cinebiografia da psiquiatra Nise da Silveira, que foi isolada por seus colegas médicos por contrapor-se aos tratamentos convencionais de esquizofrenia nos anos 1950, que incluíam lobotomia e eletrochoques. Ali, no entanto, a mensagem do relato era essencialmente positiva. Em Assédio, o desafio era plasmar na tela o horror e o trauma de vítimas marcadas para sempre. Para isso, ela e sua equipe estudaram em profundidade os depoimentos dessas mulheres e procuraram fontes do Ministério Público, envolvidas na investigação. “A força dessa história é que ela realmente aconteceu, mas, a partir daí, eu tinha que criar uma ficção com responsabilidade. Me perguntava a cada passo se não estava cruzando limites e tive que fazer escolhas éticas e estéticas”, diz. Uma das dificuldades foi o grande número de vítimas, diretas e indiretas, entre as quais Camargo inclui a própria família do médico. “Isso faz parte do potencial simbólico que essa história tem”, argumenta.
Desde que escreveu a sinopse da série, ela construiu “mulheres simbólicas”, conforme explica: “Resolvi pegar situações de repetição. Várias mulheres foram atacadas pelo Abdelmassih, por exemplo, enquanto estavam anestesiadas, então temos duas personagens que passam por isso. Também havia mulheres muito ricas e outras mais humildes, que venderam tudo para fazer a inseminação. Então temos uma personagem que chega àquele hospital com muito esforço, investindo tudo o que tinha para realizar aquele sonho. Fui pegando esses contextos que as levaram até ali para construir esse simbolismo, deixando claro que fizemos ficção”.
Para Amora Mautner, diretora artística da obra, o desafio era outro: construir cenas cruas, íntimas e de grande violência, mostrar cenas de estupro sem suscitar em “nenhuma cabeça torta” algum tipo de excitação sexual. Para isso, adotou o que chama de “estética de IML”, que permeia toda a série, com uma fotografia fria, em tons de verde e branco. “Todas as cenas de violência são contadas a partir do ponto de vista da mulher. E queríamos contar o estupro como uma espécie de morte mesmo, de uma maneira que seja angustiante e doído para quem vê”, explica.
Mas apesar de falar de dor, a obra fala também —e principalmente— de cura através do afeto. O foco está posto sobre as relações que se comunicam umas com as outras para romper o círculo de silêncio. “Elas conseguiram achar umas às outras na Internet, em um momento em que esse movimento digital ainda era muito incipiente, para tomar contato com a história daquelas que vivenciaram o mesmo drama e, assim, ter força de denunciar”, destaca Maria Camargo. A roteirista lembra, por exemplo, que muitas vítimas de Roger Abdelmassih contataram vítimas de João de Deus, médium preso acusado por mais de 300 mulheres de abuso sexual, para ajudá-las. “Essa sororidade, essa rede de solidariedade entre as mulheres, às vezes entre mulheres muito diferentes entre si, realmente existe”. De isso também trata Assédio, de mulheres salvando-se a si mesmas e umas às outras pelo poder da palavra.