De acordo com base inédita à qual a Gênero e Número teve acesso junto à ONG Fiquem Sabendo e à Lei de Acesso à Informação, no estado de São Paulo mulheres são maior parte das vítimas de ocorrências, que vão de ameaça a estupro, e acontecem principalmente dentro de casa
(Gênero e Número, 23/05/2019 – acesse no site de origem)
Juliana** estava recém-separada quando decidiu criar uma conta no Tinder. Após alguns meses navegando pelo aplicativo, encontrou um homem que julgou ser interessante e, passados alguns dias de conversa, decidiu chamá-lo para sua casa. Àquela altura, ele já havia lhe falado seu nome completo e até números de documentos, então não haveria motivos para Juliana se preocupar — até o meio da noite. Na madrugada, após jantarem e transarem consensualmente, o encontro se transformou em agressão: Juliana foi obrigada pelo homem a fazer uma prática sexual de que não gosta, enquanto ele ignorava as dezenas de vezes em que ela pedia para parar. Quando se deu conta de que estava sendo vítima de um estupro, ela só esperou a agressão acabar, sentindo-se impotente.
Ao final do ato, Juliana buscou um hospital de referência na capital paulista para fazer o procedimento de profilaxia, conjunto de medidas preventivas realizadas após um episódio de violência sexual para evitar ou reduzir as chances de contaminação por determinadas doenças. Em toda a cadeia de atendimento, o único momento em que sentiu-se mal foi quando estava frente a frente com um médico. Ali, Juliana foi responsabilizada pelo crime de que havia sido vítima, e teve seu relato classificado como “abuso sexual”, e não “estupro”: “Ele não considerou estupro somente porque eu abri a porta do meu apartamento”. Depois do episódio, Juliana decidiu não registrar boletim de ocorrência: “O que o processo penal faz hoje além de revitimizar as mulheres?”, lamenta.
Eu ouvi que era ‘vagabunda’, por transar no primeiro encontro. Mas eu não queria namorar, não queria casar: só queria fazer sexo.
— Juliana, vítima de estupro após conhecer agressor no Tinder
Casos como o de Juliana acontecem a todo o tempo. Em 2018, em média a cada três dias uma pessoa registrou ocorrência policial relacionada a aplicativos de relacionamento no estado de São Paulo. Além do Tinder, há registros que também envolvem Badoo, POF, Happn e Grindr. Os dados foram obtidos pela plataforma Fiquem Sabendo, via Lei de Acesso à Informação, com a Secretaria de Segurança de São Paulo e são apresentados com exclusividade pela Gênero e Número. Em 2014, o primeiro ano analisado, foram 32 ocorrências. Em 2018, foram 113 casos, um aumento de 253%, sem considerar a subnotificação comum em crimes de violência contra a mulher.
No total, foram 338 registros no período de cinco anos, entre 2014 e 2018. Entre estes, 237 boletins de ocorrência foram classificados como feito pela “vítima” ou “declarante”, e 2/3 são mulheres. As principais ocorrências registradas por elas são difamação, injúria e ameaça, mas há também estupro, extorsão, furto e lesão corporal. Entre os homens, os principais crimes registrados são ameaça e difamação, e não há nenhum registro de estupro.
Um dos aplicativos que constam no levantamento é o Grindr, popular para aproximar pessoas da população LGBT+. Todos os casos relacionados ao Grindr tiveram como vítima homens, com crimes de difamação, furto, perturbação do trabalho ou do sossego alheio e roubo. Há também um registro de “perigo de contágio venéreo”, o único do levantamento.
Já o Tinder, aplicativo em que Juliana conheceu seu agressor, lidera o ranking de menções nos registros de ocorrência em São Paulo: foram 153 casos nos últimos cinco anos, sendo 60 somente em 2018. Apesar de bastante popular, com mais de 4 milhões de usuários pagantes em todo o mundo, o aplicativo não registrou nenhuma ocorrência em 2014, primeiro ano analisado. Naquele ano, somente Badoo e POF figuraram nos registros.
Punição pelo desejo
A advogada Ana Lúcia Dias é membro da deFEMde (Rede Feminista de Juristas) e também da REHUNA (Rede pela Humanização do Parto e Nascimento), e construiu sua trajetória profissional auxiliando mulheres vítimas de violências no estado de São Paulo. Depois de tanto acompanhamento, ela avalia que a maior carência das mulheres que se tornam vítimas é uma rede de apoio.
“Há custos, remédios e terapia. Mas é raro haver uma rede que sustenta tudo isso, e não raro as mulheres traumatizadas não conseguem se reposicionar no mercado de trabalho. Quem paga os remédios, o terapeuta, o psiquiatra? Quem está no depois? O que a sociedade faz com a mulher vítima de violência?”, indaga a advogada.
Para ela, há uma punição nos sistemas de saúde e judiciário pela mulher que sente desejo. “O desejo do homem é justificado, e o desejo da mulher é penalizado. É justo o homem estar nos aplicativos procurando mulheres, mas a mulher que entra ali está rompendo um monte de regras.Quando um médico coloca em credibilidade a palavra da vítima é uma penalização. As mulheres nos aplicativos são punidas porque estão buscando atender ao seu desejo”, analisa Dias.
Fugindo de tal sentimento de penalização, Juliana, a vítima que abre esta reportagem, ficou mais de cem dias morando fora do Brasil, sem acesso a redes sociais, mantendo contato com apenas poucos amigos e longe da família. Ao voltar ao país, tentou suicídio: “É muito difícil desvincular quem sou e quem é a pessoa daquela história, para os outros. Isso impactou nas minhas relações pessoais, porque pessoas com quem eu convivia não conseguiram ficar próximas, sentiram vergonha e se afastaram”, relembra.
No período em que ficou no exterior, Juliana conheceu outras mulheres e observou que o Brasil é um dos países que mais penalizam o sexo. Inevitavelmente fez um paralelo com o que ouviu de algumas pessoas ao relatar o crime que havia sofrido: “Eu ouvi que era ‘vagabunda’, por transar no primeiro encontro. Mas eu não queria namorar, não queria casar: só queria fazer sexo”, ressalta.
Quem paga os remédios, o terapeuta, o psiquiatra? Quem está no depois? O que a sociedade faz com a mulher vítima de violência?
— Ana Lucia Dias, advogada especialista em direitos reprodutivos
Ameaça via redes
Casos de ameaça e perseguição também são comuns após a utilização de aplicativos de relacionamento. Renata** sofreu com a ação de um agressor psicológico. Após o primeiro encontro com um homem que conheceu no Tinder, ela percebeu que não queria continuar a vê-lo. Com isso, se negou marcar novos encontros e, como resposta, recebeu uma enxurrada de ameaças e perseguições. Em certo momento, ele lançou mão dos problemas psicológicos que tinha para que Renata não o “abandonasse”. Para cortar a pressão, ela decidiu manter uma amizade, com receio de “prejudicá-lo”. Ela também não registrou boletim de ocorrência, e depois de um tempo resolveu “sumir”. Até hoje, ele não voltou a procurá-la.
A advogada e especialista em direito digital Gisele Truzzi destaca que, com os aplicativos, o tipo de ameaça sofrido por Renata é ainda mais comum. Por isso este tipo de crime consta entre as primeiras posições do ranking trazido pela Gênero e Número.
“Os crimes de calúnia, injúria e difamação estão fortemente ligados a esses casos, porque os homens que têm esse tipo de comportamento não aceitam um eventual ‘não’ e querem rebaixar a imagem da mulher. Com os aplicativos, isso se tornou mais fácil, porque as conversas estão ali. É é só dar um print no conteúdo ou na foto e divulgar, deixando a mulher vulnerável”, analisa.
Para ela, o aumento do registro de casos relacionados à violência psicológica não significa que haja mais episódios, mas uma maior percepção da mulher em relação às violências que sofrem: “Elas estão se conscientizando de que, de fato, esse tipo de exposição é crime e estão denunciando, algo que antes não acontecia”.
É justo o homem estar nos aplicativos procurando mulheres, mas a mulher que entra ali está rompendo um monte de regras.
— Ana Lucia Dias, advogada especialista em direitos reprodutivos
Protocolo de segurança
A coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher (DFM) de São Paulo, delegada Jamila Jorge Ferrari, explica que, depois de constatada que a relação foi mediada pela plataforma, a polícia pede à empresa que suspenda a conta do agressor. Se os dois saem do ambiente do aplicativo e as conversas acontecem no WhatsApp, por exemplo, a recomendação de Ferrari é que a vítima faça capturas de tela das conversas: “A partir do momento em que você printa, tem data e hora, e a gente consegue eventualmente rastrear o indivíduo pelo número do telefone, para saber onde está ou se ele é um outro tipo de criminoso”.
A mulher tem que entender que ela foi vítima de um crime, que não é culpa dela e que precisa procurar ajuda
— Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher (DFM) de São Paulo
Além da recomendação prática, Ferrari orienta que usuários de aplicativos evitem passar informações pessoais muito detalhadas antes de conhecer efetivamente a pessoa. Uma dica valiosa é tentar obter algumas informações-chave para, caso necessário, conseguir rastrear o agressor: “Mesmo que ele diga que se chame João e isso seja mentira, é possível rastreá-lo com outras informações”, explica.
Em relação à subnotificação, a coordenadora das DFM aconselha que as vítimas não deixem de fazer a denúncia, principalmente por se tratar de crime em campo privado. “A polícia não pode entrar na vida particular das pessoas e descobrir uma agressão, a gente precisa saber o que está acontecendo. E independentemente de qualquer coisa, tudo que acontece na delegacia é sigiloso e, por natureza, fica restrito às partes. A mulher tem que entender que ela foi vítima de um crime, que não é culpa dela e que precisa procurar ajuda”, ressalta Ferrari, acrescentando a eventual necessidade de encaminhamento para apoio psicológico, psicossocial ou jurídico.
Em relação ao sistema de saúde, a vítima não precisa ter boletim de ocorrência em mãos para ser atendida em casos de violência sexual. A Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013) define que a palavra da vítima é a única validação necessária para que ela seja atendida em hospitais e tenha acesso à profilaxia e amparo médico, psicológico e social imediatos.
O que dizem os apps
O homem que agrediu Juliana mentiu sobre seu nome, números de documentos e toda a sua vida. Da mesma forma, foram registrados nove outros casos de falsidade ideológica ou falsa identidade relacionados aos aplicativos nos últimos cinco anos. Residências também são os locais mais comuns para todas as ocorrências: crimes em apartamentos ou casas são 60% do total. O algoz de Juliana entra na estatística dos perfis falsos. Ela afirma que o Tinder tomou conhecimento de seu caso, mas não a procurou.
“Eles tinham meu nome, poderiam ter me procurado, me oferecido algo, mas não fizeram nada. A responsabilidade acaba sendo sempre da mulher. Eu achei melhor deixar para lá, porque eu tinha feito sexo com a pessoa. Meus vizinhos podem até ter ouvido. Mas quem ouviu que eu disse não? Como eu provo que eu disse não? É um absurdo”, relembra.
Procurados pela Gênero e Número, os apps Tinder, Badoo, POF e Grindr não responderam à reportagem. Em nota, o Happn informou que há procedimentos de segurança no aplicativo: não é possível enviar fotos nos chats do aplicativo, e também há um modo invisível, “criado para permitir que os usuários desapareçam da linha do tempo de outros usuários quando vão a lugares específicos”.
O Happn destacou que há possibilidade de denúncia e bloqueio de perfis, e que a equipe de relacionamento do app pode tratar do caso em 30 minutos, com eventual banimento do agressor. Se o caso chegar à polícia e o aplicativo for comunicado, o Happn informou que analisa individualmente os relatórios, enviando um aviso ou “uma proibição fortemente aplicada” ao agressor, mas sem maiores detalhes de como seria.
**Os nomes das vítimas que deram seus depoimentos para esta reportagem são fictícios.
Lola Ferreira