Ao menos sete textos foram apresentados na Câmara; EUA e países europeus já tipificaram conduta
(Folha de S.Paulo, 24/05/2019 – acesse no site de origem)
A criminalização da perseguição obsessiva, mais conhecida como “stalking”, é tema de ao menos sete projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados desde 2009. Para especialistas, a tipificação preenche uma lacuna e segue tendência mundial, mas os limites devem ser bem traçados.
Hoje, a conduta costuma ser enquadrada no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais: molestar ou perturbar a tranquilidade de alguém, por acinte ou motivo reprovável. A pena é de quinze dias a dois meses de prisão ou multa (que ainda consta em réis no texto).
A contravenção não é suficiente para lidar com a questão, diz a promotora de Justiça Ana Lara Camargo, que atua no Mato Grosso do Sul e é autora de um livro sobre o assunto. “O texto é de 1941, não cobre a situação de ‘stalking’, quanto mais de ‘cyberstalking’”, diz ela.
A falta de tipificação, segundo ela, dificulta o registro da ocorrência na delegacia: “Vai depender da narrativa da vítima, de como ela consegue se expressar, e de como o agente vai entender. Torna muito difícil de obter proteção”.
Se a vítima tiver relação familiar ou de afeto com o perseguidor, e sua integridade física estiver em risco, ela pode recorrer à Lei Maria da Penha e solicitar uma medida protetiva. Caso se trate de um desconhecido, está desprotegida.
Em um contexto de internet e mídias sociais, essa proteção é especialmente importante, diz a promotora, já que as novas tecnologias facilitaram o contato entre as pessoas e a atuação e stalkers desconhecidos, que agora têm um novo meio para chegar até as vítimas.
A modelo Carolina Cascaes, 30, foi vítima de um perseguidor que conheceu por meio da internet. Viu o anúncio de uma vaga para trabalhar em um evento em uma rede social publicado por um suposto produtor e entrou em contato.
Ele mudou o foco das conversas e começou a dar em cima da mulher. Quando ela recusou as investidas, o homem a xingou e ameaçou. O número dele foi bloqueado, mas Cascaes começou a receber ligações dele de outros números. “Ele me ameaçou de morte, disse que ia infernizar a minha vida”, afirma ela. “Me ligou mais de cem vezes em uma noite.”
A perseguição durou cerca de seis meses, segundo a modelo. Nesse período, ele acompanhava as publicações online da mulher e mandava mensagens ameaçadoras. Carolina teve que mudar a rotina: passou a evitar frequentar alguns lugares e não deixava mais a filha ir sozinha até a escola.
Ela o denunciou em uma delegacia da mulher de São Paulo. O caso foi registrado como ameaça. Depois, se juntou a outras 15 mulheres, que também foram vítimas do homem, e levaram o caso até o Ministério Público. Foi expedida uma ordem de prisão contra o perseguidor, que está foragido.
“Quem está do outro lado do computador tem certeza da impunidade”, diz uma servidora pública que também foi vítima do homem, que não quis se identificar. “A gente não sabe do que uma pessoa como essa é capaz.”
Dos sete projetos apresentados no Congresso, o mais antigo é de 2009, do exdeputado federal Capitão Assumção, hoje deputado estadual no Espírito Santo pelo PSL, que busca tipificar o crime de perseguição insidiosa. Prevê reclusão de 1 a 4 anos —a título de comparação, a pena para homicídio culposo (sem intenção de matar) é de 1 a 3 anos de detenção. O texto está desde março na mesa diretora da Câmara.
Também de 2009 é o projeto da ex-deputada Rose de Freitas (Pode), hoje senadora pelo Espírito Santo. Outros quatro projetos semelhantes foram apresentados neste ano, pelos deputados Fábio Trad (PSD-MS), Lincoln Portela (PR-MG), Valdevan Noventa (PSC-SE) e Coronel Chrisóstomo (PSLRO). Há ainda um que trata de “cyberstalking”, enviado em 2016 pelo deputado Flavinho (PSC-SP). As penas sugeridas variam entre 1 e 8 anos de prisão.
Outros países já acrescentaram a conduta a suas legislações penais. Nos Estados Unidos, o estado da Califórnia foi o primeiro aprovar uma lei do tipo, em 1990, na esteira do assassinato da atriz Rebecca Schaeffer por um perseguidor obsessivo. Todos os 50 estados americanos têm leis sobre o tema.
De acordo com o site Stalking Risk Profile, que reúne dados sobre o tema, ao menos 60 países têm leis ou iniciativas que buscam combater o stalking, entre eles Alemanha, Índia, Itália e Canadá. A última atualização do portal, uma iniciativa de pesquisadores australianos, foi em 2014.
O desafio para os legisladores brasileiros é deixar claro o que caracteriza uma perseguição obsessiva, diz o juiz Mário Rubens Filho, da vara de violência doméstica e familiar de Itaquera (zona leste de São Paulo).
O magistrado define o “stalking” como a reiteração de importunações e ameaças que buscam perseguir e cercear a liberdade da vítima. “Tem que ter cuidado para não limitar o contato entre as pessoas”, afirma. “É preciso diferenciar uma conduta socialmente admitida de outra mais grave, sem consentimento da outra parte.”
Aproximação, conversa e “fuxicadas” casuais em redes sociais, diz ele, estariam no rol de comportamentos mais toleráveis. “O problema do
‘stalking’ é ser um comportamento reiterado”, diz.
É necessário deixar claro em que momento a aproximação torna-se criminosa, diz Maíra Zapater, especialista em direito penal da FGV (Fundação Getulio Vargas). “Quantas vezes alguém tem que telefonar para ser obsessivo? Quantos emails tem que mandar?”, questiona. “O limite é tão individual, depende da tolerância de cada um. A redação será muito difícil.”
Apesar de ver a iniciativa com bons olhos, ela considera a pena excessiva, “por ser um crime sem violência ou grave ameaça, a princípio”.
A tipificação também é importante para a produção de estatísticas e dados sobre o assunto, escassos no país, segundo os especialistas. Falta um diagnóstico mais preciso sobre perfil das vítimas, contexto de perseguição e quantos dos casos envolvem desconhecidos no país, diz Zapater.
Nos Estados Unidos, a questão é mais bem delineada. Segundo pesquisa do Departamento de Justiça americano, divulgada em 2009, 20 em cada 1.000 mulheres acima de 18 anos consultadas foram vítimas de stalking, ante cerca de 7 em cada 1.000 homens.
A criminalização, contudo, não será efetiva se for uma ação isolada, afirma Edson Luz Knippel, professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É preciso, diz ele, de forma concomitante, investir em medidas de prevenção, na melhoria da rede de atendimento à vítima e na investigação dos crimes.
Júlia Zaremba