A antropóloga Debora Diniz analisa os desdobramentos da acusação de estupro de Neymar: “O que circula é a versão de um homem poderoso com mais audiência que qualquer veículo de comunicação no planeta”
(Marie Claire, 03/06/2019 – acesse no site de origem)
Neymar foi acusado de estupro e nega o crime. Ao invés de aguardar a investigação policial ou mesmo se pronunciar com amparo de advogados, optou por expor-se ao mais vulgar tribunal de justiça do planeta, as mídias sociais. Sua conta no Instagram, que está entre as 10 com mais seguidores na história, fez com que 120 milhões de pessoas fossem alcançadas com seus seis minutos de explicações. Em instantes, de algoz passou a vítima.
A narrativa de Neymar pode ser espontânea ou parte de uma estratégia calculada de defesa. Para um crime de difícil comprovação, como é o estupro em relações que se estabelecem consensuais, Neymar fez uso de uma tática moral que ressoa no imaginário de gênero – os homens seriam seres vulneráveis à artimanha erótica de mulheres sedutoras. Ouvimos sua voz como narrador, enquanto a vítima é exposta em diferentes níveis da breve intimidade vivida: vemos partes de seu corpo erotizado, lemos frases soltas de um jogo de sedução. Quem o assiste passa a ser voyeur da vida sexual de homens famosos, porém ingênuos.
Como recuso o papel de participante no tribunal global, me interessa acompanhar os efeitos de sua narrativa para a composição de quem seria a “vítima” do escândalo ou da violência: se ele ou a mulher. Os julgadores do tribunal atuam ainda como detetives de datas e textos, passam a discutir evidências sobre quem estaria falando a verdade. Se à mulher coube a voz inicial de acusação, em resposta, Neymar fez uso de um poder inalcançável a quase qualquer outra pessoa no planeta: um palanque exclusivo de autodefesa. Em sua versão dos fatos, ela foi lançada ao papel de sedutora interesseira, e ele de vítima da natureza masculina para o sexo e do poder traiçoeiro.
Os juízes do tribunal virtual ignoram que a intimidade exposta para milhões de pessoas nada prova sobre a alegação do crime de estupro. O que circula é a versão de um homem poderoso com mais audiência que qualquer veículo de comunicação no planeta. Sua narrativa se ancora em elementos do fascínio pelo sexo e na fácil desqualificação das mulheres vítimas de violência sexual. A mim, não interessa vasculhar o corpo dessa mulher anônima, mas protegê-la.
Não sabemos a verdade do estupro, mas sabemos a crueldade com que Neymar expôs a intimidade vivida com esta mulher e com que a lançou à cena da pornografia global no intuito de atiçar o voyeurismo sexual. Como uma isca ao machismo latente, a adesão foi rápida: o papel do menino pobre foi colorido com a ingenuidade erótica comum aos homens quando se veem seduzidos por mulheres bonitas. Neymar seria só mais um “menino” que caiu nas artimanhas do sexo, e como prova, dizem os julgadores virtuais, basta ver as imagens enviadas pela mulher. O contraponto do “menino ingênuo” de 27 anos é a mulher interesseira ou prostituta. O enredo da defesa parece perfeito para silenciá-la: ela é duplamente culpada – pelo sexo indevido e pela exposição da intimidade de um menino.